Nos últimos cinco anos houve um aumento substancial de matrículas de crianças e adolescentes diagnosticados no transtorno do espectro autista (TEA) em escolas regulares no Brasil, mas, neste Dia Internacional de Conscientização do Autismo, a percepção é de que a luta pela inclusão escolar ainda engatinha. Apesar da maior presença, os principais desafios persistem, como a melhora na formação de professores, a flexibilização de materiais e a oferta de recursos humanos para o auxílio na sala de aula. Isso sem falar na negativa ou limitação de matrículas, medidas que ainda ocorrem na rede privada, apesar de ilegais.
Segundo o último censo escolar, 294.394 alunos com autismo cursaram os ensinos infantil, fundamental ou médio das redes pública e privada em 2021. A alta é de 280% se comparada a 2017, quando havia 77.102. Números que chamam a atenção, mas, segundo educadores e terapeutas, representam apenas uma parcela do universo que deveria frequentar a sala de aula – No Brasil, seriam mais de 2 milhões de pessoas, segundo estimativas.
Se ainda se percebe problemas no acesso, na aprendizagem não é diferente. A máxima de que cada aluno é individual e, por isso, deve ter suas especificidades levadas em conta desde o primeiro dia de aula deve ser elevada à última potência no caso dos autistas, que são diferentes uns dos outros.
“Conhecer as características de cada um é essencial. Nem todos dentro da mesma especificidade são beneficiados pela mesma estratégia. A gente tende a padronizar alunos com deficiência, mas as características comuns não os tornam iguais. Inclusão envolve diversificar estratégias e não repetir modelos”, diz o administrador de empresas Rodrigo Hübner Mendes, que se especializou em diversidade e fundou um instituto dedicado ao tema que leva seu nome.
Especialização, aliás, é palavra-chave quando o assunto é educação inclusiva. Segundo a psicóloga Salete Regiane Monteiro Afonso, que é mestre em educação e trabalha na área há mais de 20 anos, o trabalho não pode ser atribuído apenas à professora regente da sala. “O atendimento educacional especializado é um direito dos alunos com deficiência. E é um serviço que deve perpassar todas as modalidades de ensino, do infantil ao superior e profissionalizante e atuar de forma colaborativa.” Salete explica que esse professor especializado é quem deve fazer a ponte com os demais professores da escola, auxiliando na adaptação dos materiais, na forma de apresentar o conteúdo aos estudantes autistas e, quando recomendado, dando aula a eles no contraturno, nas chamadas salas de recursos.
Responsável pelo espaço na Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Adolpho Otto de Laet, a professora Ivana Tavares explica que a sala de recursos oferece uma maior variedade de equipamentos que podem ajudar na aprendizagem, como brinquedos educativos e materiais de diferentes texturas e cores
“Devemos ter um olhar para as especificidades. Não existe um algoritmo que sirva a todos, sabe? A inclusão passa por respeitar o tempo de cada um. Aqui trabalhamos a adaptação e flexibilização do conteúdo. Às vezes, uma pequena mudança na forma de apresentar a atividade já traz resultado”, diz.
Na segunda, quando a reportagem do Estadão chegou à Emef, Ivana usava ilustrações para ajudar Diogo Gonçalves Araújo, de 6 anos, a compreender a diferença entre figuras grandes e pequenas, entre o maior e o menor. Ao lado dele, na sala de aula regular, a professora contava também com a ajuda dos demais alunos na tarefa. Já na sala vizinha, Hugo Monteiro, de 7 anos, fazia a lição passada na lousa pela professora ao lado da estagiária Simone Moraes, de 35, que o auxilia na rotina de atividades.
“A convivência com os pares é essencial para o desenvolvimento dos alunos com deficiência. A questão do espelhamento é muito importante nesse processo. Percebemos os avanços no dia a dia”, diz Ivana, que afirma “tirar” os estudantes da sala regular, para passar um tempo fora da classe, só mesmo quando necessário.
De acordo com o grau de suporte (hoje é essa a nomenclatura para definir os níveis de cada um), autistas podem ter dificuldade em permanecer sentados ou mesmo dentro da sala e “escapes” são essenciais para que se organizem.
PARCERIA. Outra medida prática considerada essencial é integrar a escola à equipe de terapia do aluno, quando ele dispõe de acompanhamento multidisciplinar – geralmente psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e, de acordo com as necessidades, também um fisioterapeuta.
“O psicólogo, por exemplo, ajuda a professora a ler as questões comportamentais do aluno com TEA, especialmente quando ele não é oral. Ele auxilia ainda na montagem de uma rotina de atividades visual que faça o estudante compreender a sequência”, ressalta Salete, que também destaca a importância de a escola receber dicas de um terapeuta ocupacional. “Autistas são muito sensoriais. Fatalmente uma questão sensorial mal resolvida trará um padrão comportamental nem sempre funcional. E uma orientação profissional às vezes pode ajudar a evitar essa situação.”
Mas, mesmo havendo consenso sobre os resultados do trabalho conjunto entre educação e saúde, muitas escolas particulares são resistentes em receber essa ajuda. O receio é de que o profissional de fora interfira no currículo definido ou identifique falhas mesmo na inclusão oferecida.
“Recentemente tentei agendar uma observação de um paciente na sala de aula e no intervalo, sem sucesso. Ele tem estado muito agitado, com o comportamento de se morder e essa observação me ajudaria a propor o que chamamos de “dieta sensorial” para ele na escola, a fim de tentar reduzir esses comportamentos. Mas me disseram que eu iria atrapalhar o andamento da sala por já haver uma auxiliar no espaço. Reuniões online são geralmente mais bem recebidas”, diz Thalita Sanchez, que é terapeuta ocupacional.
Diretora da Emef Adolpho Otto de Laet, Ana Paula Fortes diz que as escolas, públicas ou privadas, precisam entender que a parceria é produtiva e não interfere na autonomia da escola. “A gente não quer só matrícula e permanência. A gente quer aprendizagem. Inclusão é isso, e compartilhar experiências ajuda no processo de compreensão das necessidades daquele aluno. A escola tem que ter as portas abertas, agregar profissionais e não excluir quem quer que seja”, ressalta.
RECURSO HUMANO. Quem tem filho autista ou com qualquer outro tipo de deficiência que impeça sua autonomia para atividades simples, como ir ao banheiro ou segurar o lápis, relata preocupação da porta da escola para dentro. Os motivos são óbvios: na ausência dos pais, alguém precisa assumir o papel de cuidador. Mas, neste aspecto, o número de profissionais de apoio não acompanha a evolução observada no total de matrículas.
Na rede estadual, por exemplo, há cerca de 5,5 mil profissionais de apoio no autocuidado (responsável por prestar assistência com locomoção, higiene e alimentação) para um universo de 68 mil alunos com deficiência – desses, 15,5 mil estão dentro do TEA. Não são todos os que precisam, mas a sua ausência pode impedir que alguns frequentem a escola.
O diretor do Centro de Apoio Pedagógico (CAPE) do Estado, Jefferson de Paulo, reconhece que há uma fila de espera nessa área e afirma que, a partir de 2023, o governo vai incrementar essa rede de auxílio, com a contratação de profissionais de apoio dentro das salas – hoje, quando há oferta, é só dos cuidadores.
Organizada por meio de um documento orientador publicado somente em 2011, a política de educação especial do Estado promete um salto no próximo ano com a ampliação de salas de recursos nas unidades da rede.
“Ela era fixa em uma escola só de determinada região. Depois, virou itinerante e agora a ideia é utilizar espaços ociosos de cada escola para isso. Elas serão, portanto, espalhadas pelas diretorias de ensino e não mais concentradas”, diz. Com mais salas, a promessa é de contratação de mais professores especialistas – hoje, são 2.385, sendo 342 voltados exclusivamente para o atendimento de autistas.
A rede estadual tem mais de 5 mil escolas e ainda matricula crianças e adolescentes com TEA em instituições particulares especiais. Hoje, são 2.814 estudantes nessa situação, que, segundo educadores, deve representar uma exceção. O censo escolar de 2021, no entanto, apontou quase 97 mil alunos com deficiência frequentando salas ou escolas especiais.
Mais avançada, a inclusão escolar na Prefeitura de São Paulo já conta com estagiários de pedagogia dentro das salas para atuar diretamente com alunos com deficiência, mas não atende toda a demanda. Segundo o Estadão apurou, há 853 vagas abertas na rede, que possui 20 mil estudantes com deficiência, sendo 6 mil autistas. (Estadão Conteúdo).
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