O governo Bolsonaro recuou das mudanças no edital para compra de livros didáticos que havia deixado de exigir das editoras referências bibliográficas, compromisso com a agenda da não violência contra as mulheres, promoção das culturas quilombolas e de povos do campo.
Após revelação da Folha de S. Paulo nesta quarta-feira(9) sobre alterações no edital, o Ministério da Educação divulgou nota afirmando que as mudanças eram de responsabilidade da gestão Michel Temer (MDB). A explicação do novo governo é negada pelo ex-ministro da Educação de Temer.
No início da noite, o presidente, Jair Bolsonaro (PSL), colocou a culpa no governo anterior. “A referida medida foi feita pelo governo anterior e corrigida por nós”, escreveu ele no Twitter.
As alterações no edital do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) 2020 constam de nova versão publicada no dia 2 de janeiro. O documento serve de referência para que as editoras produzam as obras didáticas e as apresente para avaliação do governo.
O MEC de Bolsonaro divulgou nota no início da tarde de quarta, após a publicação da reportagem e a repercussão negativa. A reportagem pediu esclarecimentos à pasta na tarde de terça-feira (8).
A equipe de transição de Bolsonaro acompanhou todos os últimos atos da pasta. Houve 17 encontros e a transição começou em 3 de dezembro. A data do documento retificado é de 28 de dezembro, quando a equipe de Bolsonaro trabalhava dentro do MEC.
O foco em materiais didáticos será diretriz do governo para combater supostas doutrinações de esquerda na educação, bandeira de Bolsonaro.
O ex-ministro da Educação Rossieli Soares Silva negou que são de autoria do governo Temer as alterações do edital. “Nossa gestão nunca discutiu essas questões. Na verdade, em retificações anteriores deixamos mais claras questões como relacionadas às mulheres”, disse à reportagem. “Todos os atos a partir do dia 1º de janeiro são de responsabilidade do novo governo”.
O ex-ministro encaminhou à reportagem arquivo com as alterações pedidas por sua equipe ao edital e que não incluem os trechos polêmicos.
Em nota, o atual ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, informou que vai suspender a versão do edital.
“O MEC reitera o compromisso com a educação de forma igualitária para toda a população brasileira e desmente qualquer informação de que o Governo Bolsonaro ou o ministro Ricardo Vélez decidiram retirar trechos que tratavam sobre correção de erros nas publicações, violência contra a mulher, publicidade e quilombolas de forma proposital”, diz a nota.
Na versão anterior do edital, a orientação era que as obras promovessem “positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não violência contra a mulher”.
Na versão do dia 2, o trecho sobre a atenção especial à agenda da não violência contra a mulher foi suprimido.
Os livros deveriam ainda “promover positivamente a cultura e a história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo”. O MEC excluiu desse trecho as menções às palavras quilombola e povos dos campos. Ainda foi suprimido trecho que exigia livros sem erros de revisão e ou impressão.
A reportagem identificou ao menos dez alterações no documento, que mantém, no geral, o conteúdo original. Foram mantidas, por exemplo, orientações para que livros estejam livres de preconceitos sobre orientação sexual.
“Recebemos com surpresa no edital, particularmente pelo fato de que as obras já foram entregues no final de novembro”, diz a diretora da Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares, Vera Cabral.
Na última edição do PNLD para os anos finais do ensino fundamental (6 ao 9º ano), em 2017, o governo comprou 153 milhões de livros e investiu R$ 1,47 bilhão. Foram beneficiados 31 milhões de alunos.
O combate a supostas doutrinações de esquerda tem sido articulado desde antes da posse do presidente e do ministro Vélez Rodriguez. Um dos colaboradores do movimento Escola sem Partido que faz análises de supostas irregularidades integrou a equipe oficial da transição da pasta.
Religioso e conservador, o professor Orley José da Silva deve ser nomeado para um cargo no MEC. Ele é doutorando em ciências da religião em Goiás e, em seu blog, afirma, por exemplo, que a questão quilombola é uma pauta do PT. O próprio Bolsonaro já fez ataques a quilombolas.
Sob o título “Livros do MEC de Temer poderão engessar ações didáticas do MEC de Bolsonaro”, relativiza a escravidão de negros e o genocídio de indígenas na colonização. Ele critica obras que chegam em 2020 às escolas por apresentar a escravidão “como um ato desumano exclusivo da elite branca eximindo as comunidades africanas que escravizam sua própria gente”.
Uma das prioridade da nova equipe à frente do MEC é o combate ao chamado marxismo cultural, o “globalismo” e “ideologia de gênero”, termo nunca usado por educadores.
Ao tomar posse como ministro da Educação, Vélez Rodríguez exaltou a família, igreja e valores tradicionais. Os livros didáticos são muitas vezes as únicas ferramentas pedagógicas de apoio aos professores. Em cidades mais pobres, essa realidade é ainda mais forte.
Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, a exclusão desses temas do edital do livro didático seria preocupante. “A educação é também uma política de construção da identidade nacional. Parte fundamental da construção nacional é a capacidade reconhecer a diversidade”, diz.
“Em relação à violência contra a mulher, o governo nega problemas estruturais fazendo relativismo histórico e suprimindo temas que existem no dia a dia. A função da escola é mostrar que violências são atitudes equivocadas mas também servir de alerta para questões que podem acontecer no cotidiano das crianças.” (PAULO SALDAÑA, BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)