O Ministério da Educação já publicou uma nova versão de um edital que orienta a produção de livros escolares e suprimiu trechos como o compromisso com a agenda da não-violência contra as mulheres, a promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo.
Para membros do time do presidente Jair Bolsonaro (PSL), esses seriam temas da esquerda. O primeiro ato do novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, foi desmontar uma secretaria do MEC responsável por ações de diversidade, como direitos humanos e relações étnico-raciais.
Além disso, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, publicou no Twitter no último dia 5 que os professores não deveriam ensinar sobre feminismo.
O novo edital de compras de livros didáticos ainda excluiu orientação às editoras para que ilustrações retratassem “a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país”. Um trecho que vetava publicidade nos livros didáticos também foi excluído. A publicidade em material didático é vetada por resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente por ser considerada abusiva.
As alterações no edital do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) 2020 constam em nova versão publicada no dia 2 de janeiro. Esse documento, publicado inicialmente no ano passado, serve de referência para que as editoras produzam as obras didáticas e as apresente para avaliação do governo.
Após a análise de uma comissão técnica, uma lista de obras é levada para as escolas e redes, que escolhem os títulos que serão adotados. O edital em questão trata de livros para escolas dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e que devem chegar às unidades de todo país em 2020. Também contempla livros literários. As obras serão escolhidas, portanto, com base nessa nova versão.
Na versão anterior do edital, a orientação para as editoras, com relação a princípios éticos necessários, é que as obras promovam “positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-violência contra a mulher”.
Na versão atual, o último trecho sobre a atenção especial à agenda da não-violência contra a mulher foi suprimido. Os livros deveriam ainda “promover positivamente a cultura e a história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo”. O MEC exclui desse trecho as menções às palavras quilombola e povos dos campos.
A reportagem identificou ao menos dez alterações no documento, que mantém, no geral, o mesmo conteúdo original. Há orientação para que os livros estejam livres de preconceitos sobre orientação sexual ou gênero que foi mantido, por exemplo.
É comum que os editais do programa sejam retificados algumas vezes mesmo durante o processo de produção de obras. Mas desta vez, houve essas alterações pontuais sobre temas sensíveis ao novo governo. A nova versão está disponível no site do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do MEC.
O foco nos livros didáticos como forma de combate a supostas doutrinações de esquerda tem sido articulado desde antes da posse do presidente e do ministro Vélez Rodriguez. Um dos colaboradores do movimento Escola sem Partido que faz análises de supostas irregularidades em livros didáticos integrou a equipe oficial da transição da pasta.
O professor goiano Orley José da Silva deve ser nomeado para um cargo no MEC, ainda não definido. Religioso e conservador, Silva é doutorando em ciências da religião em Goiás. Em seu blog, Silva afirma, por exemplo, que a questão quilombola é uma pauta do PT. O próprio Bolsonaro já fez ataques a comunidades e membros quilombolas.
“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”, disse o agora presidente da República. O governo já determinou a suspensão de cerca de 1,7 mil processos para identificação e delimitação de territórios quilombolas.
Sob o título “Livros do MEC de Temer poderão engessar ações didáticas do MEC de Bolsonaro”, Silva relativiza a escravidão de negros e o genocídio de indígenas na colonização. Ele critica obras que chegam no ano que vem às escolas por apresentar a escravidão “como um ato desumano exclusivo da elite branca eximindo as comunidades africanas que escravizam sua própria gente”.
A partir da reprodução de páginas de livros, ele afirma que as obras insistem na questão indígena, “como se os europeus não tivessem oferecido nada de bom aos índios, nem mesmo educação.” Uma das prioridade da nova equipe à frente do Ministério da Educação é o combate ao chamado marxismo cultural, o globalismo e “ideologia de gênero”, termo esse nunca usado por educadores.
Ao tomar posse como ministro da Educação, Vélez Rodríguez exaltou em discurso a família, igreja e valores tradicionais. Os livros didáticos são muitas vezes as únicas ferramentas pedagógicas de apoio aos professores. Em cidades mais pobres, em que secretarias de Educação têm pouca estrutura, essa realidade é ainda mais forte.
Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, a exclusão desses temas do edital do livro didático é preocupante. “A educação é também uma política de construção da identidade nacional. Parte fundamental da construção nacional é a capacidade reconhecer a diversidade”, diz.
“Em relação à violência contra a mulher, o governo nega problemas estruturais fazendo relativismo histórico e suprimindo temas que existem no dia a dia. A função da escola é mostrar que violências são atitudes equivocadas mas também servir de alerta para questões que podem acontecer no cotidiano das crianças.”
A priorização no combate a supostas doutrinações também estará presente nos processos de avaliação, como o Enem e o Saeb (avaliação federal que compõe o Ideb, indicador de qualidade da educação).
O também goiano Murilo Resende Ferreira foi indicado para a Diretoria da Avaliação da Educação Básica, subpasta responsável pelas duas ferramentas dentro do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).
Em publicações e palestras, Ferreira já atacou professores, chamando-os de desqualificados e manipuladores. Seguidor do escritor Olavo de Carvalho, já fez parte do MBL (Movimento Brasil Livre) mas Renan Santos, um dos coordenadores nacionais do movimento, escreveu no Twitter que ele fora expulso por ser “lunático, conspiratório, fora da realidade”.
Muitas escolas e redes de ensino pautam suas atividades a partir do que cai no Enem e no Saeb. O Enem é a porta de entrada para praticamente todas universidades federais. O próprio Bolsonaro já publicou nas redes sociais mensagem em apoio a Resende, que é doutor em economia mas não tem experiência em avaliação educacional.
Até a publicação desse texto, o MEC não havia respondido aos questionamentos da reportagem. Orley Silva também foi procurado, mas preferiu não se posicionar e disse que não participou desse processo. A reportagem não conseguiu contato com Murilo Resende Ferreira, que ainda não foi nomeado oficialmente. (PAULO SALDAÑA, BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)