MARILIZ PEREIRA JORGE – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Mulher-Maravilha” deve se tornar hoje o filme com a maior bilheteria mundial dirigido só por uma mulher. Mas após três semanas em cartaz percebe-se que, na leitura do público mais engajado, que contava com esse reforço da aliada do movimento feminista, o longa de Patty Jenkins ficou devendo resposta à altura do que se esperava da personagem.
O descontentamento de parte da exigente audiência começou após a divulgação do pôster e trailer com a heroína (Gal Gadot) de axilas depiladas. O exagero do Photoshop só se equipara ao excesso de patrulha na reclamação.
A expectativa era grande, claro, afinal é a primeira vez que a personagem, criada em 1941, é protagonista no cinema, num momento em que o feminismo ressurgiu com pautas tão necessárias e que se fazia urgente uma heroína no meio de tantos filmes com salvadores do mundo do sexo masculino.
O longa, mesmo festejado, recebeu críticas pela representação do feminismo. Uma foi a de que a natureza individual da heroína é característica de heróis machos, e que o único caminho para uma mulher avançar no “mundo masculino” seria a coletividade.
Ainda que os movimentos organizados sejam essenciais para conquistas, as maiores mudanças só serão possíveis por meio do que chamo de revolução individual da mulher, exatamente o que a heroína faz.
O filme retrata o melhor do feminismo moderno. Consciente da capacidade, proativa e assertiva. Decide o que quer ser, apesar da resistência da mãe, age independentemente do cenário masculino, se relaciona com homens de igual para igual, trata o sexo com o mocinho com a esperada naturalidade, sem neuras, passividade e romantismo exagerado.
Reclamam que MM tem poderes graças a Zeus, um homem, o que enfraquece o empoderamento esperado numa mulher. É possível fazer leitura menos contestatória. A de que ele reconhece a igualdade entre os gêneros ao transformar Diana, amazona mortal, numa deusa poderosa, a única capaz de salvar o mundo.
Outro personagem que causou reação foi a vilã, retratada, segundo uma crítica, como cientista perversa, como se mulheres inteligentes só usassem o poder para o mal.
Quadrinhos estão cheios de vilões de ambos os gêneros, e quase sempre são eles os de pior caráter. E não dá pra exigir sororidade só porque a mocinha do filme é mulher.
Há centenas de guerreiras inteligentes, independentes e empoderadas em Themyscira, onde Diana foi criada e o ponto de partida da obra. Não coincidentemente essa parte é tida como um dos melhores momentos por retratar a sociedade matriarcal do sonho de algumas feministas. Não o meu.
Não vivemos numa ilha habitada só por mulheres. Temos que sobreviver em um mundo ainda bastante masculino, em que vilões nos desafiam em forma de violência, desigualdade de oportunidades, preconceito, dupla jornada.
A melhor lição da heroína é que não dá para esperar que o mundo se transforme no que esperamos, temos que participar ativamente da mudança, cada uma com o seu papel, mesmo sem avião invisível, braceletes ou chicotinho da verdade. Na maioria das vezes será só ignorando o machismo a nossa volta, como ela fez.
Ao analisar as circunstâncias nas quais a personagem surgiu nos anos 1940, nos EUA, é difícil acreditar que uma personagem tão feminista pudesse ter sido criada quando os direitos das mulheres começavam a ser conquistados.
No livro “A História Secreta da Mulher-Maravilha” (ed. Best Seller, 480 págs.), de Jill Lepore, professora de História Americana na Universidade Harvard, o protagonismo da heroína é dividido com o seu criador, o psicólogo William Moulton Marston, um sujeito esquisito e fascinante.
Ele, que pensou em suicídio aos 18 anos, deve sua salvação ao encontro com George Herbert Palmer, professor de filosofia e viúvo de Emmeline Pankhurst, um dos maiores nomes do movimento sufragista americano.
Foi o início da ligação com o feminismo que culminou na Mulher-Maravilha, três décadas depois, na Segunda Guerra. Era o momento propício para o surgimento de uma mulher forte, independente, capaz de salvar o mundo, quando os homens lutavam fora do país e abriram espaço para a emancipação feminina.
Detalhes íntimos de Marston foram as grandes inspirações para os superpoderes. Criou o detector de mentiras, representado pelo laço da verdade, e viveu um triângulo amoroso muito antes do mundo falar em poliamor. Uma das mulheres usava braceletes.
O livro narra a evolução nas HQs. Roupas encurtaram, houve perda dos poderes nos anos 1960, na efervescência da revolução sexual, até MM ser resgatada uma década depois pela jornalista e ativista Gloria Steinem para voltar a ser a heroína feminista que sempre foi.
Nos anos 1970 e 1980, o movimento feminista “travou”, época em que começa um embate entre feministas radicais e liberais -o “trashing”, fenômeno que vemos se repetir hoje, inclusive no Brasil.
MM ainda passou por muitas transformações visuais nas décadas seguintes, sempre seguindo o que era ditado pela opinião pública. Mais músculos, mais decotes, menos roupas, mais mulher-objeto e menos heroína, até perceberem que o mundo precisa mais de mulheres poderosas do que de tchutchucas. Como podemos conferir no filme, Marston ficaria orgulhoso da versão feminista de sua heroína, no século 21. (Folhapress)