Criada há 14 anos por uma emenda à Constituição, o instrumento jurídico que permite federalizar a apuração de crimes contra os direitos humanos foi raramente utilizada no Brasil, apesar de pedidos cada vez mais frequentes de familiares de mortos e desaparecidos de diversos Estados brasileiros.
A PGR (Procuradoria Geral da República) estuda pedir a federalização da investigação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Rio.
Por esse dispositivo, tecnicamente chamado de IDC (Incidente de Deslocamento de Competência), a Polícia Federal e o Ministério Público Federal assumem a condução do inquérito, que passa a tramitar na Justiça Federal.
Cabe à PGR suscitar ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) incidentes do gênero. Os ministros do STJ é que decidem pelo acolhimento ou não da medida.
Até 2015, segundo o último levantamento oficial feito sobre o assunto, da Secretaria de Reforma do Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça, haviam ocorrido apenas quatro pedidos do gênero, dois dos quais acabaram rejeitados pelo STJ, incluindo a apuração sobre o assassinato da missionária norte-americana e defensora dos direitos humanos Dorothy Stang, no Pará, em 2005.
Apesar de toda a repercussão que o crime gerou dentro e fora do país, os ministros do STJ entenderam que não era necessário federalizar a apuração.
Em abril de 2015, havia 49 pedidos de federalização, enviados por diversos setores, como organizações não governamentais, aguardando uma avaliação da PGR.
Os dois casos aceitos, segundo o estudo de 2015, foram as investigações sobre o assassinato, em janeiro de 2009, do advogado, ex-vereador e ativista de direitos humanos Manoel Mattos, a tiros de espingarda na praia de Acaú, em Pitimbu (PB), e a execução, em 2013, do promotor de Justiça de Itaíba (PE) Thiago Faria Soares.
O caso Mattos, que fazia denúncias contra grupos de extermínio, foi julgado cinco anos após a federalização e seis após o crime, em tribunal do júri no Recife (PE). Duas pessoas foram condenadas e três, absolvidas. O julgamento sobre o assassinato do promotor ocorreu três anos depois do crime, com duas condenações e uma absolvição.
Dois especialistas no tema do IDC, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, autor do primeiro pedido de federalização do país, no caso Stang, e o advogado Flávio Crocce Caetano, ex-secretário de Reforma do Judiciário, afirmam ver, no caso dos assassinatos de Marielle e Gomes, os requisitos necessários para a federalização.
“Para uma vítima que estava denunciando tanto a Polícia Civil quanto a Militar, me parece que está correta a ideia de federalizar. O IDC foi criado para quando não houvesse uma isenção das forças de segurança. Vamos lembrar que um dos argumentos para a intervenção no Rio foi justamente a ideia de que a segurança pública estava toda contaminada”, disse Caetano.
Segundo o advogado, em 2014 foi feito um amplo estudo sobre o IDC, a cargo do advogado Guilherme Assis Almeida, porque era uma das queixas frequentes de familiares de mortos e desaparecidos no Rio que chegavam ao governo federal.
Cláudio Fonteles disse que “no quadro vivido pela segurança no Rio, é bastante plausível” a federalização. Segundo o ex-procurador, um dos critérios básicos para o pedido de federalização são “indicadores concretos da inércia por envolvimento sistemático de forças de segurança”, incluindo crimes com “envolvimento de políticos, de milícias compostas por policiais e de policiais”, quadro que se ajusta à situação do Rio.
“No Rio, hoje o quadro é ainda mais complicado pela falência total da segurança pública”, disse Fonteles.
O ex-procurador ponderou que a federalização poderia ser deixada de lado caso o governo do Rio de Janeiro apresentasse medidas concretas em curto espaço de espaço. “Tem que ser coisa rápida. O estado tem que dizer bem claramente ‘estamos fazendo isso e aquilo, as nossas linhas de investigação são essas’. Não tem isso de dizer ‘é secreto’. Muitas coisas não são secretas. O governo do Estado tem que mostrar coisas concretas, reais, não promessas, para resolver o crime. Não digo que deve apresentar os autores do crime, mas o que está fazendo para chegar até eles”, disse o ex-procurador-geral.
Fonteles afirmou que durante o julgamento do pedido de federalização do caso Stang, em 2005, houve “uma pressão violenta” contrária de procuradores-gerais de Justiça nos Estados, que temiam perder espaço político para a PGR. O STJ decidiu por unanimidade contra a federalização.
Marielle Franco, 38, foi morta na noite de quarta (14), junto do motorista Anderson Pedro Gomes, 39, quando voltavam de uma roda de conversa intitulada “Jovens Negras Movendo Estruturas”. O carro em que estavam foi atingido por nove tiros. A polícia trabalha com a hipótese de execução. Uma assessora, que estava no banco de trás, sobreviveu.
O assassinato da vereadora ocorreu dois dias antes de a intervenção federal na segurança pública do estado completar um mês. A medida, inédita, foi anunciada pelo presidente Michel Temer (MDB) em 16 de fevereiro, com o apoio do governador Luiz Fernando Pezão, também do MDB.
Temer nomeou como interventor o general do Exército Walter Braga Netto. Ele, na prática, é o chefe das forças de segurança do estado, como se acumulasse a Secretaria da Segurança Pública e a de Administração Penitenciária, com PM, Civil, bombeiros e agentes carcerários sob o seu comando. (Folhapress)