Desde que se apaixonou pela Floresta Amazônica em sua primeira expedição, realizada em janeiro de 1956, a ilustradora botânica inglesa Margaret Mee ansiava pintar uma espécie em particular. Aparição envolta em mistério, a flor-da-lua, floração do cacto Strophocactus wittei, abre à noite, uma vez ao ano e somente por 12 horas. Ainda por cima, ela se exibe em locais alagados e de difícil acesso: os igapós. Portanto, suas flores quase nunca são vistas. No entanto, em maio de 1988, em sua 15ª e última incursão pela Amazônia, aos 79 anos, a artista finalmente conseguiu, depois de uma série de tentativas, flagrar e registrar em aquarela o espetáculo.
“Sentei-me no topo do barco, em frente ao botão, esperando por ele abrir. Ele se movia e exalava um perfume maravilhoso enquanto desabrochava. Magnífico! Havia uma lua cheia que víamos através dos galhos das árvores. E o tempo todo os sons dos pássaros noturnos”, ela escreveu em seu diário.
Trechos dele integram o documentário “Margaret Mee e a Flor da Lua”, disponível no YouTube. Este foi seu último desenho em solo brasileiro. A ilustradora morreu meses depois num acidente de carro em Londres. Eternamente estará ligada à flor-da-lua. Um encontro aguardado por anos a fio, símbolo da sua despedida do santuário que ela tanto amou e lutou para preservar.
Assim como Margaret Mee, muitos de nós temos uma planta do coração. Aquele ser vivo que fazemos questão de manter por perto, sob nossos cuidados. Em simbiose com a terra e as forças naturais, ele nos cativa de muitas formas, seja por realçar o elo com a nossa ancestralidade, acordar passagens felizes e reconfortantes embrenhadas na memória afetiva, seja porque ganhou um significado profundo a certa altura de nossa caminhada.
“As plantas estão presentes em nossas vidas da hora que a gente nasce à hora que a gente morre. A mãe na maternidade recebe flores, quando um filho se forma ou ganha um campeonato importante, recebe flores. Elas também estão presentes no Dia dos Namorados, no buquê do casamento e na coroa do velório”, lembra Carol Costa, professora de jardinagem e criadora do canal Minhas Plantas.
Carol conta que, depois da pandemia, muitos familiares herdaram plantas de pessoas queridas que se foram abruptamente. “Gente que nunca teve planta de repente ficou encarregada de cuidar de 50 bonsais. Ou acolheu uma orquídea linda, que é a lembrança da mãe. Veio à tona a responsabilidade de zelar por essa herança”, diz.
Claro que buscar conhecimento e se munir de técnicas de jardinagem ajuda muito. Mas, segundo Carol, tanto melhor elas cuidarão das verdinhas se forem capazes de criar vínculos humanos com o mundo vegetal. “Não é o ‘botaniquês’ que será determinante, e sim o gesto de besuntar a planta com humanidade.”
A especialista em plantas Ana Paula Lino também incentiva essa relação. “Quando nos conectamos à natureza, promovemos o nosso próprio bem-estar e conforto emocional. O simples olhar para as plantas traz paz e harmonia. Quando as regamos, as mudamos de vaso ou as adubamos, estamos trocando energia e nos fortalecendo para a vida”, salienta.
Criadora do canal Vida no Jardim, a paisagista Lucia Borges espicha a lista de benfeitorias ao pontuar que as plantas também purificam o ar que respiramos, proporcionam sombra, alimento e cura. Além de beleza, é claro. Do seu terreno afetivo, ela colhe esta doce recordação:
“Minha mãe ama rosas. Cultiva-as de longa data. Ela se recorda com amor e carinho de sua avó e mãe, que tinham muitas rosas em seus jardins no interior de Minas Gerais e, posteriormente, de São Paulo. Seu nome é Rosinha, e seu avô, sempre que a via, dizia: ‘Rosinha, pegue uma rosa!’, e ela corria para o jardim a fim de escolher a mais bela”.
A escritora Clarice Lispector era outra amante das rosas, especificamente das silvestres. Numa crônica publicada em maio de 1968, ela contou aos leitores: “O perfume delas, meu Deus, me dá ânimo para respirar e viver”. Ela enxergava nessa espécie um mistério “estranho e delicado”.
Explica: “À medida que vão envelhecendo, vão perfumando mais. Quando estão à morte, já amarelando, o perfume fica forte e adocicado, e lembra as perfumadas noites de lua do Recife”. É uma menção à cidade que a acolheu dos 4 aos 14 anos, quando, então, ela se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Por fim, a ucraniana naturalizada brasileira se derrete: “Rosas-silvestres, eu vos amo. Diariamente morro por vosso perfume”.
Lá em casa temos muito amor pela erva-cidreira. É que meu avô adorava o ritual que consistia em colher os maços fresquinhos da horta do sítio, limpá-los na pia da cozinha, entornar água da mina na velha chaleira com haste de madeira e preparar a infusão. O cheiro se esparramava pela casa. Hum! Prenúncio de que nos aqueceríamos, juntos, nas noites de inverno. Ele ficava tão satisfeito ao ver os descendentes desfrutarem do seu plantio.
Minha mãe mantém no quintal um canteiro onde cultiva a erva-cidreira. E, quando ela prepara a infusão, é como se meu avô viesse nos visitar. Revivemos a sensação de ser amadas por essa figura paterna, que tanto honrou seu pedacinho de terra e as maravilhas que dele brotavam.
Quem desencadeia essa magia no cotidiano de Silvia Jeha, dona do viveiro orgânico Sabor de Fazenda, é a hortelã. Muito utilizada na culinária árabe, ela tem propriedades digestivas e vermífugas, providencial num cardápio que inclui quibe cru.
“Sou neta de libaneses. Cresci tomando água saborizada e infusões dessa deliciosa folhinha que trazia alívio para dores de barriga e enjoo. Isso fez parte da minha infância, adolescência e juventude. Acabei transmitindo esse costume para minhas filhas. Acredito que elas levarão para suas casas também.”
Hoje, ela admite, se encanta pelo manjericão, considerada uma erva real pelos franceses e divina pelos indianos. “Uma das formas mais lindas de presentear alguém é oferecendo manjericão, seja pelo aniversário, mudança de casa, abertura de um novo negócio, projeto, noivado, casamento ou o que for, quando você deseja para aquela pessoa prosperidade, sucesso, realização, alegrias”, justifica.
Em sua morada, nunca falta a verdinha aromática e medicinal. Aliás, Silvia a cultiva de duas maneiras. Uma com flores, para agradar às abelhas, que são grandes polinizadoras, e também para incrementar o escalda-pés, já que se trata de uma planta calmante.
“Não fico sem os banhos das flores e folhas. Quando minhas filhas eram pequenas, sempre dava banho nelas. Sono certo”, recorda. A outra forma, sem flores, é usada na culinária. Aliás, na falta de flores perfumando a casa, ela conta que corre no quintal, colhe um belo buquê de ervas e o espalha pelos cômodos. “Proteção e saúde garantidas”, acredita.
O vínculo com quem a trouxe ao mundo e não está mais fisicamente nele se perpetua na vida da médica e escritora Mila Nascimento toda vez que ela faz bolo de fubá com erva-doce, receita original da família. O aroma, que remete à casa e ao colo da mãe, tinha de marcar presença no lançamento de seu livro Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono (Patuá) na FLIP, em Paraty.
Dona Livia queria muito ter ido ao evento literário, mas partiu semanas antes. Como dar a volta no destino? Como remediar uma ausência indizível? Mila teve uma ideia. Quem comprava o exemplar ganhava a receita do bolo e um saquinho do chá. “Que bonito! Esse aroma me fez regressar à casa da minha avó!”, ela ouviu. “Como médica, sei bem que os cheiros fazem parte das nossas áreas mais primitivas de afeto e autocuidado. Cheiro é conexão!”, diz a autora, que, com a ajuda da erva-doce, colocou Dona Livia junto dela na noite de autógrafos, realizando o sonho materno.
Na história de Hilde Luize Gonze, administradora e estudante de Direito, a orquídea tece a ponte com o pai, falecido. Seu Geraldo tinha o dedo verde, como são conhecidas as pessoas hábeis com as plantas. Décadas atrás, ele havia presenteado a primeira esposa com uma orquídea olho-de-boneca. Danada para florir, ela permaneceu na família após a morte da homenageada e alcançou a geração de Hilde, fruto da segunda união.
“A planta viveu mais de 40 anos. Quando me casei, em 2020, queria uma da mesma espécie na decoração, para meu pai simbolicamente fazer parte da celebração. Como essa orquídea floresce em outubro e meu casamento foi em novembro, os decoradores tiveram que achar uma bem parecida. Levei os vasinhos para casa e elas já deram mudas. É como se eu tivesse começado uma nova história com outra orquídea e como se meu pai dissesse: cuida dela, vai ser legal!”.
Viver perto de uma planta pressupõe testemunhar seus ciclos, acompanhar as idas e vindas de suas florações, seus períodos de nudez, alternados com temporadas de exibicionismo. O mundo natural nos lembra que nada neste planeta é estático. Uma estação vai, outra vem, e, de novo, cá estamos, inebriados pelo espetáculo da primavera.
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
Jornalista. Plantou na varanda um manacá-da-serra em homenagem à avó. Dona Lourdes amava os tons lilás da árvore que embeleza a Mata Atlântica.