Berlim – Numa entrevista ao The Hollywood Reporter, quando 50 Tons de Cinza passou em Berlim – e é bom dizer que foi o filme mais disputado pelo público e (sim!) pelos críticos no evento; todo mundo queria, ou tinha a desculpa de que tinha de ver -, a diretora Sam Taylor-Johnson contou qual foi seu momento de aflição ao adaptar o best seller de E.L. James.
Faltando poucas semanas – dias – para o início da filmagem, Charlie Hamm desistiu de fazer Christian Grey. Hamm, você sabe, é aquele cara que faz TV e estourou na internet numa foto sem cueca e que parece carregar um volume indecente (uma mala?) na calça. A foto até podia ser comparada parte da estratégia do filme. O protagonista, afinal, é um bilionário que adora jogos sadomasoquistas, e a ideia contida na foto, de uma força bruta, parecia perfeita.
Em cima da hora, Hamm, assustado com a ideia de que teria de dedicar anos de suas vida – é uma série – a Christian Grey, caiu fora. Taylor-Johnson surtou. No desespero, foi contratado o dublê de modelo e ator James Dorn. Hoje, como ela diz, não consegue ver outro senão ‘Jamie’ no papel.
Vamos recapitular o começo da história. Graduanda substitui a colega e vai entrevistar o bilionário que será paraninfo da turma. Ele é jovem, belo, rico. Poderoso e intimidante. Ela faz perguntas inadequadas – ‘Você é gay?’ -, ele inverte o jogo e a entrevista. Rola um clima, ele a persegue, sempre sugerindo que tem gostos ‘peculiares’. Finalmente, ele a leva para sua casa. ‘Você vai fazer amor comigo, agora?’, pergunta a ansiosa… A resposta de Grey é a mais direta possível, algo que nunca se ouviu numa produção A de Hollywood.
Pense nos velhos tempos em que o produtor David Selznick teve de enfrentar o código de censura da indústria para que Rogett Butler/Clark Gable pudesse dizer a Scarlett O’Hara/Vivien Leigh que não ligando (‘give a damm’) para o que ela pensava. Grey responde – “Eu não faço amor. Eu f… (fuck), and hard (duro, em mais de um sentido)”.
Parabéns, o que você ouviu é histórico em Hollywood, mas o importante é que imediatamente se cria um clima, ou um conceito. Mulheres querem amor, homens querem sexo – e poder sobre elas. É a proposta que Grey termina por fazer claramente a Anastasia. Ele não suporta que o toquem, nunca dormiu na mesma cama com uma mulher.
Sexo é uma forma de testar limites. A garota tem um problema – é virgem. Ele resolve o problema. A desvirgina com delicadeza, ‘quase’ dorme a seu lado. No dia seguinte, ele acena com um contrato. Sua ligação com Anastasia será regida pelos termos do documento, que propõe uma relação de confiança entre associados no prazer.
Tudo é especificado, o que pode e o que não pode. Existem signos que, durante as sessões de sadomasoquista, podem interromper imediatamente o ritual. E existe a cláusula de confidencialidade, que a mulher terá de respeitar (como um executivo numa grande empresa).
Como homem do poder e do dinheiro, Grey tenta transformar a carta de intenções num documento comercial. E tira de Anastasia seu velho carro e lhe compra um novo, desses bem modernos. Ao mesmo tempo que a introduz no universo do sexo sombrio, arrasta a amante a um turbilhão de emoções (voo de planador – outro milionário fez isso: Steve McQueen em Crown, o Magnífico, de Norman Jewison).
Ela não é uma amante como as anteriores de Grey – 15, como ele conta. E ela termina por perturbá-lo. Numa noite, ele faz aquilo que ela mais deseja. Vai visitá-la na cama e confessa parte do seu segredo. Grey é uma fachada (sabemos).
De cara, na entrevista inicial, é dito que ele foi adotado. E agora o próprio Grey acrescenta que a mãe natural era prostituta. Morreu quando ele tinha 4 anos, e Grey lembra-se de ‘coisas’. É uma cena clássica do cinemão. Alguém fala, revela-se enquanto outro finge dormir. … não finge. Ela dorme, e portanto nada ouve. E quando Grey voltar, e acrescentar novas informações – o som da chuva -, ela de novo vai ouvir.
Tanto quanto a questão do ‘amor’ e do ‘sexo’, Sam Taylor-Johnson usa esses detalhes para discutir as questões do masculino e do feminino. Howard Hawks era bom nisso, e os críticos prestavam atenção. Claro, não vão prestar atenção numa empresa comercial como 50 Tons de Cinza – mas deveriam. Sam é uma artista visual conceituada.
Como diretora, fez o melhor filme sobre John Lennon, Nowhere Boy. Casada com um pintor também renomado, largou dele para se unir a um homem 18 anos mais jovem, com quem teve, depois dos 40, três ou quatro filhos. É uma biografia e tanto.
Se Sam subverteu o script da vida, por que não subverteria o da série de livros de E.L. James? O preço foi entrar em choque com a autora, que exerce rígido controle sobre sua criação. E.L. já disse que teve a ideia para sua série depois de ler/ver Crepúsculo. Faltava sexo na saga juvenil, e ela resolveu escrever seu livro sadomasô para ‘mad housewifes’, donas de casa insatisfeitas, ou para mamães. Sam muda um pouco o tom. Para completar a biografia da diretora, vale acrescentar que ela teve câncer.
Uma mulher que supera um casamento de conveniência e vence o câncer merece respeito. E.L., a roteirista, a diretora, a dona do estúdio – todas mulheres, falando sobre sexo ‘hard’. Tudo bem, por ser uma produção A, o sexo só finge ser ‘pesado’. Todo mundo sabe onde se vê sexo hard – na internet, em DVD, em cinema poeira. E a verdade é que Sam adentra o universo SM para falar de confiança. Christian Grey foi iniciado por uma amiga da mãe.
Para se afirmar, ele só precisa fingir que é forte – que assumiu o controle de sua vida, como o das empresas. Na verdade, enquanto ele se abre e fragiliza, Anastasia fortalece-se. Ela até brinca, e na festa de formatura insiste para as colegas que ele é gay. Como culminação, pede de volta o velho carro.(Fonte: Estadão Conteúdo)