Um relatório publicado nesta quinta-feira (20) pela Pastoral Carcerária (entidade de evangelização e defesa dos direitos humanos dos detentos) aponta que as denúncias de tortura no sistema prisional brasileiro não resultam em qualquer forma de responsabilização.
Entre 2014 e 2015, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou mais de 4.000 casos de tortura em presídios. Para o estudo “Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa”, a Pastoral acompanhou 105 casos em 16 Estados e no DF durante os últimos dois anos.
Entre as práticas de tortura aferidas estão sessões de espancamento, violências sexuais envolvendo estupros ou empalações, tratamentos humilhantes e castigos -com morte em alguns dos casos. Há o relato de uma presa que teve o parto realizado enquanto estava presa por algemas. 66% dos casos envolvem agressão física.
Em nenhum houve responsabilização de um agente público ou do Estado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa. Não foi instaurada qualquer ação penal para apuração de crime de tortura ou de outro tipo penal relacionado, nem foi proposta qualquer ação indenizatória em favor das vítimas.
A conclusão é a de que as inovações legais e institucionais dos últimos anos no campo não contribuíram para a erradicação da prática de tortura e maus tratos. “Comparando com o que se tinha antigamente, a gente se defronta com os mesmos obstáculos, os mesmos vícios”, diz Paulo Cesar Malvezzi Filho, assessor jurídico da Pastoral e organizador do relatório.
As denúncias foram encaminhadas para órgãos estaduais como ministérios públicos, tribunais de justiça e defensorias públicas, mas de acordo com o relatório nenhum deles teve um número expressivo de atendimentos satisfatórios para as denúncias. “O levantamento mostra que há deficiências grotescas no trabalho dessas instituições. Em menos de um terço dos casos as vítimas ou testemunhas foram ouvidas”, diz Malvezzi.
O relatório aponta que o testemunho de agentes penitenciários e policiais, por outro lado, foi amplamente incentivado e que seus relatos foram decisivos para o arquivamento do caso em questão. “Há falta de engajamento para apurar”, afirma o organizador.
Uma parte considerável das denúncias, 17%, foi direcionada para a própria direção do presídio em que foi praticada a tortura, o que pode implicar em retaliações ou ameaças. Um dos principais fatores para as vítimas e familiares não denunciarem a tortura é justamente o medo de retaliações, segundo o estudo.
“O fato de esta pessoa estar sob custódia no ambiente do agressor gera dificuldades no processo de apuração”, diz Valdirene Daufemback, diretora de políticas penitenciárias do Depen (Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça e Cidadania).
Segundo Malvezzi, a raiz do problema está no encarceramento em massa, que “não gerou uma maior sensação de segurança para a sociedade. Pelo contrário, você vê facções criminosas surgindo, morte e tortura [dentro dos presídios]”.
Para o assessor da Pastoral a superlotação pode ser solucionada com a descriminalização de certas condutas (como às relacionadas às drogas, por exemplo), formas alternativas de justiça que não recorram à Justiça Penal e a diminuição dos presos provisórios, hoje 40% dos 622 mil detentos no Brasil.
Daufemback, por sua vez, aposta no fortalecimento das corregedorias estaduais e na capacitação dos servidores penitenciários para a redução de casos de abuso. “Vamos realizar encontros com as ouvidorias e corregedorias estaduais ainda neste ano”, afirma.
Ela diz haver casos que resultam em responsabilização. “Existem processos administrativos que já estão gerando resultados. Algumas dessas denúncias resultam em afastamento e desligamento. É um processo de construção da cultura de responsabilização que não havia antes.”
Reconhece, no entanto, que ainda há muito a ser feito. “Temos todo o interesse em mudar essa realidade.”
(Folhapress)