Era um domingo, mas Bruno acordou às 5h50, no susto. A casa tremia inteira, o barulho do helicóptero parecia cada vez mais próximo e as longas e pesadas rajadas de tiros tornavam as tentativas de voltar a deitar a cabeça no travesseiro impossíveis.
Desta vez foi de surpresa, diz ele, mas no geral morador de favela do Rio de Janeiro já sabe: se morre policial, vai ter operação. Foi o que aconteceu no dia 6 de janeiro, quando centenas de agentes entraram em seis comunidades da zona norte carioca, inclusive a de Bruno (o nome foi trocado), o Jacarezinho.
A primeira megaoperação no estado em 2019 e a mando do governador então recém-empossado Wilson Witzel (PSC) era uma resposta à morte do soldado Daniel Henrique Mariotti, 30, baleado na cabeça na tarde anterior ao tentar impedir um roubo na Linha Amarela, avenida próxima.
Após segurar a alça do caixão, Witzel declarou que, sob sua gestão, a morte de agentes “e de qualquer cidadão de bem sempre vai resultar em ações” das polícias. Essa diretriz, porém, não é novidade e só gera ainda mais mortes, concluiu um estudo inédito sobre o assunto em 2017.
Diante da morte violenta de um PM, as chances de uma pessoa ser morta por um agente em serviço na mesma região são 3,5 vezes maiores no dia seguinte e 1,2 nos sete dias posteriores. No mesmo dia, a alta é de 11,5, mas nesse caso os óbitos podem ter ocorrido num mesmo evento.
O cálculo foi feito pela cientista social Terine Husek, da Uerj (Universidade Estadual do RJ), analisando todas as mortes de e por policiais de 2010 a 2015 no estado. Para evitar distorções por áreas e períodos mais sangrentos, ela ponderou dados de violência de cada local.
Uma outra análise recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV) também apontou correlação entre os dois fatores a nível nacional: quando o volume de policiais mortos em um estado aumenta, as mortes por agentes também cresce (e vice-versa). SP e RJ acumulam os maiores números.
“Desde 1990 há autoridades falando que vão aumentar a repressão, um discurso que conquista muitos corações, como nestas eleições. Mas, se você olha os dados, essa resposta tem dado resultados contrários”, diz Husek.
A partir de entrevistas com 32 PMs, ela concluiu que por trás da maior letalidade está principalmente uma ideia na tropa e nos comandos de que o Rio estaria em guerra. Essas megaoperações, portanto, demonstrariam força e assim até preveniriam outras mortes de policiais.
Na prática, porém, o que se faz é colocar agentes que viram um colega morrer no dia anterior no mesmo local de risco. “Além do sentimento de vingança, tem o medo. Eles diziam: ‘Depois disso nunca mais hesitei, eu atiro'”, afirma a pesquisadora.
Um a cada três policiais militares fluminenses já viu um companheiro ser baleado e um a cada cinco já presenciou a morte de um colega, de acordo com um questionário feito com mais de 5.000 PMs no estado em 2015.
“Vimos que os mais estressados e expostos à violência quando criança ou adulto dizem usar mais a força. Esse histórico psicológico é fundamental para entender a violência policial”, pontua o sociólogo Ignacio Cano, um dos autores do estudo e coordenadores do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.
A resposta das corporações a isso é tímida. “A psicologia da polícia é boa de forma geral, mas é um trabalho individual, com alguns. Não tem uma ação que controle a ansiedade e tropa como um todo, que vá no batalhão no dia seguinte da morte, por exemplo”, diz Husek.
Questionadas, as secretarias de polícia Militar e Civil não responderam o que têm feito para prevenir a vitimização policial ou para minimizar seu impacto no resto do grupo.
No dia do enterro do soldado Mariotti, o governo anunciou a criação de uma equipe de apoio às famílias dos agentes vítimas de violência em serviço, a cargo da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, mas não citou um trabalho com sobreviventes.
A efetividade das megaoperações logo após a morte de policiais também traz dúvidas, já que elas acontecem num tempo curto para investigações –dados e resultados dessas ações normalmente não são divulgados.
A operação de 6 de janeiro em busca dos assassinos do soldado, por exemplo, resultou na morte de um civil, na apreensão de drogas e na prisão de quatro pessoas, sem incluir dois homens que dez dias depois ainda eram procurados pelo crime.
A Polícia Civil não respondeu qual é a taxa de elucidação de homicídios de policiais, o que é apontado como uma das medidas que poderiam reduzir o problema. Também não informou o nome do homem morto na entrada do Jacarezinho nem as circunstâncias do episódio.
Bruno diz que não o conhecia, mas contou já ter visto uma pessoa ser baleada pela polícia na mesma rua, que serve de travessia para outra favela comandada pela mesma facção.
Naquele dia, ele passou o domingo todo no quarto, com medo que o helicóptero voltasse e as rajadas de tiro atravessassem as telhas da cozinha e do banheiro no segundo andar. JÚLIA BARBON
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)