Abel Ferreira prometera em novembro de 2020 que não tinha atravessado o Oceano Atlântico à toa, para “passar férias”. A promessa já havia sido cumprida em sua primeira temporada, com dois títulos. Agora, com a segunda conquista da Copa Libertadores em sequência, o jovem treinador português fincou seu nome na galeria dos maiores técnicos do Palmeiras na história. O título coroa uma jornada atribulada e com mais problemas do que o treinador gostaria. Ele gosta de dizer que 24 horas é tempo suficiente para comemorar ou lamentar. Desta vez, com o seu segundo troféu continental, deve ignorar esse pensamento.
Abel é o segundo técnico mais longevo do futebol brasileiro. Só está atrás de Maurício Barbieri, comandante do Red Bull Bragantino desde setembro de 2020. Ele é o primeiro português, oitavo europeu e 23º estrangeiro a treinar o Palmeiras e em pouco mais de um ano já fez história no clube. Foi o único no século a ganhar duas taças pela equipe na temporada passada e agora colocou seu nome entre os grandes da Libertadores com a sua segunda taça. Somente ele, Felipão, Lula, Telê Santana e Paulo Autuori são bicampeões continentais por clubes brasileiros
O jovem treinador já viveu quase tudo no Palmeiras. Ele resgatou o moral de uma equipe abalada quando assumira para suceder Vanderlei Luxemburgo e a conduziu aos títulos da Copa do Brasil e da Libertadores. Depois passou um período de turbulência, com a campanha ruim no Mundial e três vice-campeonatos no início da temporada, além da eliminação surpreendente para o CRB na Copa do Brasil. Mas novamente reergueu o time e o levou ao tri continental.
Contra o Flamengo, na decisão em Montevidéu, o time se portou como o treinador gosta: calmo e sereno, com o “coração quente” e a “cabeça fria”, mantras do português. Estudioso, analisou com cuidado e precisão o adversário da final. A jogada trabalhada do primeiro mostra a atenção do treinador com os pequenos detalhes, quando a equipe confunde a marcação adversária e Mayke avança às costas do lateral-esquerdo Filipe Luís. Mesmo com o gol de empate do time carioca, a equipe palmeirense se defendeu de forma organizada e neutralizou as principais peças do rival. Coube no fim a estrela de Deyverson para marcar o gol do título
No percurso acidentado, com mais resultados negativos do que em 2020, Abel teve de rever conceitos, modificar alguns planos, mas se manteve convicto sobre o seu trabalho e não recuou diante das críticas. Há quem o vê com postura arrogante, há quem o enxergue como um profissional assertivo e corajoso.
Uma das principais revelações de uma geração de jovens técnicos portugueses, Abel, natural da cidade de Penafiel, tem 93 jogos no comando do Palmeiras. São 50 vitórias, 17 empates e 26 derrotas. Ele foi o primeiro técnico estrangeiro a levantar um troféu pelo Palmeiras desde o argentino Filpo Nuñez, em 1965.
Abel é empenhado, estudioso, inquieto, exigente e, sobretudo, intenso. Seu discurso é direto e eloquente. Ele já fez críticas públicas à diretoria pela ausência de reforços nesta temporada e também não se furtou de questionar a torcida que apoia a equipe nos momentos bons, os “torcedores das vitórias”, como ele definiu. Além disso, não se omite quando entende ser necessário criticar os responsáveis pelo calendário do futebol brasileiro.
Parte da imprensa, em muitos momentos, também já foi alvo de questionamentos do treinador. Após conduzir o time a mais uma final de Libertadores, ele passou recado a um “vizinho chato”, metáfora que criou como forma de rebater os críticos de seu trabalho. O recado, além dos jornalistas, seria destinado a parte da torcida.
Curiosamente, depois de seu primeiro trabalho como técnico, na base do Braga, ele fez parte da mídia quando foi comentarista da Sport TV, emissora esportiva de TV a cabo de Portugal. Na função, limitava-se a comentários relacionados a campo e jogo, com avaliações precisas sobre o desempenho tático das equipes, segundo relatos. Era curioso, empenhado e cordial. Agora, do outro lado, não é incomum vê-lo atirando pedras sobre os uma parcela da imprensa nas coletivas. A cruzada contra os profissionais de comunicação seguiu mesmo após vitórias.
Nos últimos dias, Abel vinha sofrendo críticas diante da série de quatro jogos sem vitória. Isso depois de a equipe emplacar seis triunfos seguidos. Mas a gangorra de resultados ficou para trás com mais um título continental que alça o português no grupo limitado de maiores técnicos do Palmeiras em sua gloriosa história de 107 anos.
No seu primeiro mês no Brasil, o português morou na Academia de Futebol, o CT do Palmeiras. Ele procura viver intensamente a rotina do clube e criou uma relação profunda com os jogadores e também com os funcionários com quem convive diariamente.
Benquisto, foi homenageado pelos funcionários quando completou um ano no cargo e se emocionou. Devolveu a reverência ao entregar um quadro com as fotos de todos os colaboradores do departamento de futebol do Palmeiras e de outros setores. Sempre que acha pertinente, o treinador, para dar ênfase à união do elenco, diz que “todos somos um”.
“A Libertadores é fantástica, a Copa é espetacular, mas título para mim enquanto homem é isso. Gratidão pelas relações que criamos aqui. O dia que sair daqui, o meu maior título são vocês”, dissera aos funcionários.
Resta agora definir a permanência de Abel. O título dá mais paz ao treinador e Leila Pereira, nova presidente do clube, quer que ele dê continuidade ao trabalho. Mas a decisão ficará a cargo do português, que ressalta reiteradas vezes ter saudade da família e já rejeitou ao menos três propostas anteriormente para deixar o Palmeiras. Caso fique, a tendência é de que traga a mulher e os filhos para o Brasil.
“E agora será um dia de cada vez, é assim que vivo a minha vida. No final faremos o balanço e decidiremos o que é melhor para todas as partes”.
(Conteúdo Estadão)