A audiência pública sobre a vacinação de crianças contra a covid-19, evento organizado pelo Ministério da Saúde, conta nesta terça-feira, 4, com a participação de médicos que já espalharam informações falsas sobre a doença, os remédios e a vacina. O evento não tem a participação de representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que autorizou a aplicação do imunizante no mês passado.
A agência foi convidada, mas decidiu não participar. “(A Anvisa) encaminhou um e-mail ao Ministério da Saúde e informou que o parecer da agência é público e que não irá agregar ao debate, por isso, não há representante da Anvisa aqui”, informou a Saúde no início da audiência.
A audiência é parte da consulta anunciada pelo ministro Marcelo Queiroga para deliberação sobre a aplicação da vacina em crianças de 5 a 11 anos. Apesar da liberação pela Anvisa, da chancela de especialistas e da experiência internacional, o governo Jair Bolsonaro é contrário à vacinação dessa faixa etária e tenta criar mecanismos para dificultar a aplicação, como a necessidade de apresentação de uma prescrição médica.
Os termos em que a aplicação ocorrerá a partir da segunda quinzena de janeiro deverá ser divulgado pelo ministério nesta quarta-feira, 5. Nesta terça-feira, a pasta realiza a audiência pública que supostamente ajudará a embasar as previsões técnicas de aplicação da vacina. Os três médicos pró-cloroquina são indicações da deputada Bia Kicis (PSL-DF), aliada do presidente Bolsonaro. O grupo também é contrário à exigência do passaporte da vacinação.
Em transmissão ao vivo em sua rede social no começo da audiência, Bia Kicis relatou ter convidado os médicos Roberto Zeballos, José Augusto Nasser e Roberta Lacerda, contrários à imunização de crianças, para falar no encontro.
Em agosto, o Projeto Comprova mostrou que Zeballos fez diversas afirmações incorretas sobre a covid-19 em vídeo no Instagram. Hoje, ele tem mais de 390 mil seguidores. Na ocasião, o médico minimizou a importância da variante Delta ao escrever que ela era “pouco agressiva”.
Zeballos também errou ao dizer que as vacinas disponíveis até aquele momento não funcionavam contra a Delta. É verdade que os imunizantes foram desenvolvidos quando a variante ainda não circulava, mas eles são, sim, eficazes contra a variante, segundo especialistas.
Procurado, Zeballos afirmou na época ter sido “o primeiro brasileiro a entender o mecanismo da doença” e declarou que “não tem sentido você vacinar com uma vacina que não é livre de riscos – todo mundo sabe disso – nas pessoas que já tiveram a doença”, mas, completou que “talvez as pessoas tenham o benefício de ter uma doença mais leve”. O Comprova considerou a publicação do médico enganosa porque ele usa dados incorretos ou imprecisos sobre a variante Delta e sobre a vacinação.
Zeballos falou na audiência pública desta terça por cerca de dez minutos e repetiu a versão de que a vacina “gerou uma resposta imunológica de 95%” para a “cepa anterior” que não está mais circulando. Referiu-se ao imunizante contra a covid como “vacina emergencial”, ignorando o fato de que a Pfizer tem o registro definitivo das doses contra a doença. O médico pediu ainda respeito à “ciência da observação”.
Renato Kfouri, representante da Associação Médica Brasileira (AMB), chamou atenção para a importância de não se aderir a “teorias da conspiração”. “Eu quero tranquilizar as famílias, os pais que estão aqui. Se a gente acreditar em teorias conspiratórias, que os órgãos internacionais querem matar nossas crianças, agem de má fé, querem colocar em risco a vida dos nossos filhos, fica realmente uma discussão muito desqualificada em termos de nível de entendimento.”
Em outra checagem, o Projeto Comprova também apontou que a médica Roberta Lacerda tirou dados de hospital israelense de contexto ao acusar o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos de mentir sobre infecções em não vacinados. A postagem circulou em agosto do ano passado. O Comprova classificou o conteúdo como enganoso porque ele retira informações de contexto e as utiliza de modo a confundir.
Prescrição médica é inviável, diz representante de secretarias
A representante do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) na audiência, Kandice Falcão, afirmou que a entidade é “extremamente contra a exigência de prescrição médica para vacinação de crianças”. Ela lembrou que os municípios estão enfrentando uma epidemia de arboviroses (como dengue e chikungunya, por exemplo), surtos de influenza e problemas decorrentes de alagamentos e enchentes.
“Não dá, não dá mesmo”, disse. “Em se tratando de saúde pública, isso é completamente inviável. Os profissionais de saúde estão sobrecarregados por conta da alta demanda de atendimento desde o início da pandemia.”
Kandice Falcão pontuou que há municípios no País que têm apenas uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para fazer todos os atendimentos. A representante do Conasems citou o esgotamento físico e mental dos profissionais de saúde e afirmou que em janeiro cerca de 30% dos funcionários do Sistema Único de Saúde (SUS) saem de férias, o que pode dificultar o trabalho.
“É muito complicado, é extremamente inviável e isso dificulta muito a exigência de prescrição médica em plena campanha de vacinação. A gente ainda está fazendo dose 2, dose de reforço e iniciar uma vacinação de criança é uma campanha”, disse.
A audiência pública recebeu perguntas por meio de WhatsApp. Questionada sobre o imunizante da Pfizer, a diretora-médica do laboratório, Marjori Dulcine, afirmou que “a coisa mais importante para esclarecer neste momento é que a vacina não é experimental”. “Ela já foi aprovada pela Anvisa”, ressaltou. (Por Julia Affonso/Estadão Conteúdo)