Venho de uma família de mulheres de caráter forte. Minha avô materna, Francisca Alves de Faria, teve 13 filhos, criou nove, sete mulheres e dois homens. Meu avô Ovídio Raimundo de Faria era um caixeiro viajante. Passava semanas fora de casa. Vô Chiquinha tinha pouco mais de um metro e cinquenta e tomava conta da casa e dos filhos.
Sabia fiar, tecer, costurar. Fazia farinha, polvilho, fubá. Também cultivava folhas de fumo, que sabia curtir e enrolar. Matava boi, porco, galinha. Tirava o couro e curtia. Conservava a carne na banha. Também sabia fazer doces, era a professora dos filhos e dos filhos dos vizinhos e gostava de contar histórias. Ensinou tudo às filhas, Percilina,Placidina, Jovina, Luzia, Maria, Hélia e Euza. Os meninos, João e José cuidavam da roça, do gado e ajudavam o pai.
Dona Chiquinha também era benzedeira. Católica fervorosa. Sabia de cor o aniversário dos filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Tinha um jeito próprio de alfabetizar esta prole: escrevia cartas a todos, que tinham por obrigação escrever de volta. Nestas correspondências analisava o desenvolvimento dos filhos e dos filhos dos filhos.
Meus avós não deixaram nenhuma das filhas casarem cedo, como era costume em Goiás nos anos 1940 e 1950. Vó Chiquinha se casou em 1910 aos 18 anos e se mudou de Morrinhos para o “sertão”, Pontalina, onde criou a família. A filha que se casou mais jovem, foi a mais velha: Percilina aos 20 anos. Minha mãe, aos 24.
Ser mulher em Goiás há 60 anos atrás não era fácil. As meninas foram se casando umas com primos, como as tias Percilina, Jovina, Luzia e Maria. Outras não. Mas eram mulheres valentes.
Um dia o marido de Jovina cismou de pôr as mãos nela. Se deu mal. Jovina era uma das mais velhas. Assim como as suas irmãos, andava à cavalo, laçava boi e aprendeu com eles a brigar igual homem. Resultado: encheu o desavisado marido de porrada. E nunca mais homem nenhum pensou em desacatá-la.
Tia Luzia caçava pato voando. Aprendeu com vô Lico que era bom de tiro com a “papo amarelo”. Certa feita, seu esposo resolveu de lhe fazer ameaças. Disse que iria na venda e quando voltasse lhe “acertaria o passo”. Mal montou no cavalo sentiu o estampido. A bala zuniu no seu ouvido. Se cagou todo em cima do arreio, e nunca mais falou em encostar a mão em ninguém. Luzia herdou a intuição da mãe. Mas ao invés de benzer jogava tarô. Era muito boa nisso, mas deixou as cartas de lado. Aquilo não dava dinheiro e ela tinha que trabalhar para sustentar a família.
Um dia, o marido de Maria resolveu que queria se separar e pediu que ela assinasse a escritura da fazenda. Ela foi para o quarto e quando voltou trouxe duas malas com as roupas do indivíduo. “Se você quiser sair de casa pode ir. Suas coisas estão aí e a fazenda eu não vendo”. E não vendeu.
Percilina, as mais velha, viveu bem com o esposo. Teve quatro filhos homens, muitos netos e era querida por sua bonomia.
Placidina era alegre, extrovertida. Casou com um político e era tão o mais querida que ele, ajudando-o a ser eleito prefeito em Edeia. Fazia mutirões para construção de casas aos necessitados, mutirão de costura para providenciar enxovais para recém nascidos. Conhecia todas as pessoas da cidade pelo nome. Foi madrinha de dezenas de meninos e meninas.
Hélia e Euza foram as últimas a se casar. Eram costureiras. Tiveram companheiros abusivos e se separaram. E olha que fazer isto nos anos 1950 era a morte social da mulher. O odioso costume da época era “fichar na delegacia” as mulheres que deixavam os maridos. Isto não aconteceu com elas por força politica do cunhado, que era prefeito. Para viverem melhor, sem o olho preconceituoso das mulheres da vila mudaram-se para a Capital.
Conto um pouco da história destas mulheres da minha família materna, para honrá-las com este testemunho neste dia 8 de março, quando se comemora o Dia da Mulher.
Minhas tias e minha mãe poderiam fazer parte da triste estatística do feminicídio, que maculam Goiás e o Brasil.
Somente no ano passado os casos de assassinatos de mulheres aumentaram em 22%; foram 38 aos em 2018, contra 31 em 2017. No dia de ontem (quinta-feira), mais um triste episódio impactou entrou nesta estatística, com o assassinato em Pires do Rio, com a morte a facadas de Kátia Tomazini pelo esposo, Fábio Tomazini, que se suicidou em seguida.
Goiás sempre foi machista, misógino e racista, mas nos últimos anos o Estado assiste o crescimento assustador do número de mulheres. Isto é sinal de uma sociedade doente. Vivemos uma epidemia de intolerância, que tem como as principais vítimas as mulheres, os jovens negros, crianças e pessoas que pensam diferente. Jornalistas, radialistas e professores também tem sido vítimas de ameças, violência e morte em Goiás.
Os governos, nas suas mais variadas esferas (municipal, estadual e federal) devem encarar como uma epidemia o avanço dos casos de violência doméstica, da violência contra a mulher e os crimes de racismo e intolerância.
Talvez a culpa seja da música, do sertanejo, do funk-nejo ou do hip-hop cujas letras tratam as mulheres como putas, vadias, sem-vergonha e ordinárias. A culpa também pode ser dos pais, que não ensinam os filhos a respeitaram a si mesmos e nem aos outros.
O fato é que há décadas os meninos são ensinados que podem tudo e que as meninas podem menos. Esta fórmula não dá certo mais.
Não existe o “varão”. Duvido muito que Saulo, ou Paulo, o mestre da lei que perseguiu Jesus e que depois se converteu ao cristianismo tenha escrito que “as mulheres sejam submissas ao marido como ao Senhor”.Não combina com os ensinamentos de Jesus. Debito esta frase a erro de revisão, ou quem sabe, de tradução do grego para o latim. Vá saber.
Estamos no século XXI. As mulheres estão cada vez mais autônomas. Estudam mais, são maioria nas universidades, nos mestrados e nos doutorados. Os homens, “garantidos” com a condição de “varão” simplesmente não estão conseguindo acompanhá-las. Acomodaram-se e ficam ressentidos quando a mulher brilha, ganha mais, avança mais na escada social.
São uns babacas!
Vão estudar!
Saiam da letargia!
Honrem suas calças!
Homem que é homem não bate em mulher. Homem que é homem respeita mulher. Homem que é homem, deixa de ser criança mimada, vira homem de fato, sai do século XIX e põe o pés no século XXI.
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