Rodney Burgess assistiu pela televisão o aviso de que um tornado passaria por cima dele e de sua casa dentro de poucos minutos. Sem um porão para se abrigar, como recomendavam os especialistas ouvidos pelo canal de notícias, torceu para que tudo fosse menos pior do que os alertas sinalizavam. “Esperei, esperei, esperei. Pensei: não há nada que eu possa fazer a não ser, provavelmente, morrer.”
Atendendo aos apelos da mulher, feitos por mensagem de texto no celular, Burgess pegou seu jipe e dirigiu o mais longe que conseguiu – chuta que foram menos de cinco quilômetros. Por alguns minutos, assistiu incrédulo, da rodovia que dá acesso à sua rua, a casa e toda sua vizinhança irem abaixo, enquanto seu carro balançava com o vento.
Os tornados que atingiram o meio oeste americano no dia 10 deixaram um rastro de destruição por mais de 400 quilômetros. O Estado do Kentucky, o mais afetado dos ao menos cinco atingidos, está ao leste o suficiente para que seus moradores acreditassem estar a salvo de tornados. E também está ao sul o bastante para reunir elementos de pobreza vistos nesta região do país que potencializam os efeitos de um evento climático extremo, como aconteceu.
Em Mayfield, hoje uma cidade destruída, os moradores dizem que nunca imaginaram passar por isso. Mas cientistas alertam que, cada vez mais, as condições climáticas se tornam propícias para que isso possa se repetir. Falta de boa infraestrutura de proteção contra desastres, maior densidade populacional do que outras áreas do meio oeste e mudanças climáticas formam a receita da catástrofe.
“Diferentes partes do país têm uma resiliência diferente a condições climáticas perigosas e, você sabe, nesta parte do país o aspecto socioeconômico torna tudo mais desafiador”, afirma Stephen Nesbitt, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de Illinois.
Burgess tentou chegar o mais próximo possível de sua casa assim que viu o tornado passar. A rua pacata parecia um lixão, com pilhas e pilhas de escombros espalhadas entre galhos e topos de árvores no chão. Com o farol alto do carro ligado, avistou uma das crianças da casa vizinha. “O Daniel, o filho deles de 9 anos, estava andando sem rumo. Ele me ajudou a achar seus pais”, disse. O casal tinha sido arrastado pelo tornado cerca de 200 metros para trás. Toda a família tentou se proteger dentro da banheira da casa, que também não tinha porão. Nenhuma parede ficou em pé. “É um milagre não terem morrido”, diz Burgess.
DESABAMENTO
Do outro lado da rodovia, a fábrica de velas da cidade virou o símbolo da tragédia. Cerca de 110 trabalhadores estavam no local no momento que o tornado passou por Mayfield, às 21h30. Oito deles morreram. “Ele estava tentando concentrar as pessoas no local onde tentavam se abrigar, dentro da fábrica. Já tinha levado alguns, quando morreu com o teto desabando em cima deles”, conta Justin Howard, primo de uma das vítimas. Funcionários acusam supervisores de ameaçarem os trabalhadores que pediram para ir embora em razão do tornado. A empresa, conhecida na cidade como “Las Velas” por trabalhadores de origem latina, pagava US$ 12,50 por hora de trabalho. Funcionários decidiram processar a fábrica.
“No sudeste dos EUA, lidamos com um problema relacionado ao setor de moradias pré-moldadas e casas móveis. São muito mais comuns nessas regiões. Há problemas na forma como essas casas pré-fabricadas são ancoradas ao solo. A probabilidade de morrer em uma casa pré-fabricada, quando esses tornados passam, é muito maior nesse tipo de moradia”, afirma Stephen Strader, geógrafo especializado em desastres, que pesquisa vulnerabilidades na moradia e sua relação com eventos climáticos extremos. As casas pré-fabricadas, típicas construções americanas montadas sobre a grama, são particularmente as mais afetadas em desastres da história recente dos EUA, como o furacão Irma, que atingiu a Flórida em 2017.
Segundo Strader, cidades comumente afetadas por furacões, como a costa da Flórida, por exemplo, passaram a ter regulações mais firmes para construção e ancoragem das casas no solo. Locais mais pobres e onde esses fenômenos são considerados atípicos, no entanto, não têm o mesmo grau de preparação.
Por isso, os alertas sobre o tornado não são o suficiente ainda que funcionem bem, como ocorreu no Kentucky — a população foi alertada com 20 minutos de antecedência. Mesmo avisadas, as pessoas não têm onde se abrigar. “As pessoas mais pobres vivem em lares inseguros”, afirma Strapper.
As casas na cidade de 10 mil habitantes no sudeste do Kentucky valem menos da metade da média do preço nacional. Uma casa americana custa, em média, US$ 217 mil. Em Mayfield, vale US$ 100 mil. A renda também é mais baixa e a pobreza, maior. Os EUA têm 11,44% da população vivendo na pobreza, enquanto Mayfield tem 34,7% dos habitantes nessa situação.
FREQUÊNCIA
Os tornados são eventos comuns nos Estados Unidos. Em 2020, foram 1.057 casos. Mas o número de mortos no ano passado inteiro (76) ficou abaixo das fatalidades que ocorreram só no Kentucky (78 mortes) há duas semanas.
“Nunca tivemos algo assim, nunca”, diz Kim Mowres, moradora da cidade há 50 anos. Há indicações de que o “beco do tornado”, a região americana que concentra tradicionalmente o maior número de tornados no país, tem se movido para o leste de forma sutil nos últimos anos. Tradicionalmente, a região abarca Oklahoma, Kansas, Arkansas, Iowa, Missouri, norte da Louisiana, nordeste do Texas e alguns trechos de outros Estados.
DOAÇÕES
Quase tudo no centro da cidade está no chão: a maior parte dos prédios, semáforos, fiação, postes. Sem energia, sem sinal de telefone e sem casa, moradores fazem filas para buscar doações de roupas, comida e itens básicos de higiene.
Os moradores perderam não só as casas, amigos e parentes, mas locais de trabalho, igrejas, escolas e memória. “É uma cidade pequena. Todo mundo se conhece. Quase todo mundo conhece alguém que morreu na fábrica. Tudo se foi. Nossa história se foi. Você andou no centro? Não é possível mais apontarmos a um lugar e dizer ‘ah, eu vinha aqui quando criança’. Já somos uma cidade pobre e isso só nos machuca mais”, afirma Kim, enquanto trabalhava como voluntária na distribuição de mantimentos.
Cientistas ainda estudam quantos tornados tocaram o solo no dia 10 e são cautelosos quando questionados sobre a relação desse evento com as mudanças climáticas. O que os meteorologistas afirmam com segurança é que as condições para que esse tipo de tornado ocorra tendem a ser cada vez mais presentes, à medida que o planeta inteiro esquenta.
Para a formação de um tornado violento, explica Strapper, é preciso ter o encontro de ar quente e úmido elevado à atmosfera, com ventos frios que mudem de velocidade e direção. Por isso, é incomum o registro de tornados nesta época do ano, tipicamente fria.
“É seguro dizer que os tipos de clima que produzem tornados provavelmente se tornarão mais comuns nas temporadas de inverno na América do Norte. E isso se deve ao fato de que todo o sistema climático está esquentando. Ainda não podemos dizer que esse evento, em particular, foi em razão das mudanças climáticas Mas podemos dizer que, no futuro, teremos mais casos desse tipo”, afirma Nesbitt, da Universidade de Illinois.
RESGATE
A chuva não dava trégua nos dias após os tornados devastarem Mayfield. Quase uma semana depois, uma tempestade que subia do Texas atrapalhava os trabalhos das vítimas, que tentavam salvar algo que restou de suas casas no meio dos escombros. O noticiário local acompanhava a formação de outro tornado, desta vez ao norte, que atingiria Iowa. Rodney Burgess, assim como outros moradores, não se importava com a chuva torrencial e, pisando em uma pilha de madeiras, troncos de árvore e pertences pessoais, tentava encontrar os presentes de natal que comprou para os cinco filhos. “Muitas vezes eu me pergunto o porquê”, disse, antes de ir embora naquele dia de mãos vazias. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. (Por Beatriz Bulla, enviada especial/Estadão Conteúdo)