Não se trata de brinquedo. Nem de fetiche. Tampouco de modinha passageira. Os bebês reborn (aquelas bonecas hiper-realistas que tomam mamadeira e vestem roupinhas como se fossem beês de verdade) não estão apenas nas prateleiras de lojas online ou nas lives de “adoção” no TikTok. Estão ocupando um lugar simbólico que antes era da relação, do cuidado, da presença.
Sim, os dados são modestos. Para cada 120 bonecas vendidas no mundo, apenas uma é do tipo reborn. E mesmo com picos de buscas e visualizações nas redes sociais, o mercado real gira em torno de US$ 200 milhões — um copo d’água dentro do oceano de brinquedos globais, que movimenta cerca de US$ 24 bilhões por ano. As informações são da coluna “Muito hype, pouca estatística: bebês reborn sob a lente dos números”, no portal InfoMoney. Mas quem olha só para a planilha perde o ponto: o reborn virou um espelho da nossa relação com o afeto — mediada por telas, moldada por algoritmos e filtrada pelo medo do outro.
Estamos trocando o outro por versões controláveis da convivência. E o outro é sempre um risco: ele pode discordar, demorar, frustrar. O bebê de vinil não. Ele não chora fora de hora. Ele não cresce. Não exige negociação. E justamente por isso, ele não nos ensina nada sobre o que é viver junto.
Há mais de uma década, Sherry Turkle já alertava em Alone Together: ao preferirmos robôs e máquinas com aparência de empatia, estamos perdendo a prática da escuta real. Não a escuta treinada por inteligência artificial para parecer atenta, mas a escuta que tolera pausas, que hesita, que responde de forma inesperada. O afeto não é automatizável. Nem o vínculo.
O reborn, nesse sentido, não parece ser um problema isolado, mas um sintoma. Ele revela o quanto estamos dispostos a investir em simulações de cuidado, mesmo que saibamos que ali não há reciprocidade. Quando um boneco se torna a alternativa mais segura para se exercer afeto, o problema não está no brinquedo. Está no contexto social em que ele passa a fazer sentido.
Parte destas pessoas usam os bonecos em terapias reais, como em lares de idosos com demência. Outra parte busca simbolizar ausências — filhos que não vieram, perdas que doem, silêncios que duram. E há ainda os que compram por estética, por coleção, por narrativa. Mas mesmo quando o motivo é individual, o fenômeno é coletivo.
Somos uma sociedade conectada e, paradoxalmente, empobrecida de laços reais. Vemos mais, interagimos menos. Curtimos, mas não cuidamos. A IA entra nesse jogo como mais uma oferta de afeto simulado: bots que chamam você de amor, apps que dizem estar com saudade, assistentes que aprendem seus gostos — mas que jamais te conhecem de verdade. Porque conhecer exige abertura, tempo, conflito. Três coisas que nossa cultura da eficiência e do desempenho emocional tem dificuldade em sustentar. Se estamos embalando bonecos com o mesmo zelo que deveríamos dedicar uns aos outros, talvez seja hora de parar e perguntar: que buraco estamos tentando preencher com silicone e código?
A resposta não está nos números do mercado nem nos trending topics. Ela está no nosso silêncio. No silêncio das relações que evitamos, das dores que não partilhamos, dos afetos que terceirizamos. Está na escolha, cotidiana e sutil, de trocar a presença pelo controle. E talvez, só talvez, o desafio agora seja reaprender a conviver com aquilo que não é previsível. Reaprender a escutar o outro — não o que o outro tem a dizer, mas o que ele tem a ser.

Jullena Normando é publicitária, pesquisadora em Comunicação e Inteligência Artificial e doutoranda pela UFG e Universidade da Califórnia.