A percepção de que as mentiras propaladas sobre o Pix que prejudicaram não só o planejamento do governo federal, mas a própria população, é analisada como uma estratégia de “propaganda de guerra’ pelo pesquisador Luiz Carlos Fernandes. Em entrevista exclusiva ao Diário de Goiás, o professor de jornalismo e também consultor na área de opinião de marketing político da Metis Consultoria, analisa o fenômeno da fake News e alerta que está na hora da sociedade se unir na “contra-propaganda” porque o que está em risco é a democracia nacional.
Ao editor-chefe do DG, jornalista Altair Tavares, o especialista questiona: a quem interessava uma propaganda de guerra contra uma medida econômica benéfica à maioria expressiva dos brasileiros? Confira a análise abaixo.
Altair Tavares – O Brasil viveu um fenômeno nos últimos dias, em que a disseminação de uma mensagem mentirosa prevaleceu na sociedade, que passou a acreditar em taxação do Pix diante de uma medida do governo que estabelecia mais controle, principalmente sobre aqueles que não fornecem informações sobre o Pix para o sistema financeiro, que é o caso das fintechs. Como o senhor analisa esse fato de que prevaleceu uma mentira, prevaleceu uma distorção diante da verdade?
Luiz Carlos – Esse é um fato complexo, não é, Altair? A gente tem que pensar, para entender um fato desse, a gente tem que pensar em uma série de coisas. Pensar no cenário, pensar em fatores psicológicos, sociológicos que envolvem isso.
A gente tem que pensar na questão do próprio papel da mídia e das redes sociais e da internet. A gente tem que pensar também no fenômeno político, partidário, ideológico que está envolvido nisso, e tem que pensar, inclusive, no que é fake news, a quem ela serve, como é que ela funciona. Então, assim, é um fenômeno complexo.
A gente tem que pensar nesse cenário todo que envolve essas questões para a gente poder entender. Eu poderia começar enumerando uma questão que é interessante a gente pensar em relação a esse fenômeno, que o Bernardo Soares vai dizer o seguinte: existe uma tensão de identidade individual e coletiva, que a gente chama de modernidade.
E esse mal-estar coletivo, ele é capitalizado por quê? Pelas promessas do capitalista que não são cumpridas, pela chamada democracia capitalista, que ela só garante o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à propriedade. E assim mesmo de forma seletiva, o direito mais garantido é o de propriedade. Então, você gera um fenômeno enorme de insatisfação total.
Há uma fragilidade das chamadas identidades coletivas, que geralmente se manifestariam por questões através dos partidos políticos e das entidades associativas, que perderam força. Você tem essa questão da judicialização das questões da sociedade e a justiça não é representativa. Então, ela é vista como algo, vamos dizer assim, não legítimo para tomar essa decisão.
Você tem esse cenário de saudosismo do passado, que gera esse discurso reacionário e que alimenta esse sentimento baseado muito na questão da religião, inclusive. E você tem a questão, de que a gente pode até pensar, Altair, na questão da credibilidade dos meios de comunicação. Essa semana, o ministro [Fernando] Haddad foi questionado se a credibilidade do governo não está muito baixa por ter acontecido um fenômeno desse.
E [a credibilidade] da imprensa também, porque a imprensa desmentiu e ninguém acreditou. Ou seja, todas as instituições democráticas e liberais estão em baixa credibilidade nesse momento no Brasil e em parte do mundo. Por quê?
Porque elas foram desacreditadas. O fenômeno fake news é um fenômeno de propaganda de guerra, que ele precisa desacreditar, ele precisa desacreditar as instituições, a universidade, a ciência, a imprensa, o direito, a justiça, porque esses são pilares do liberalismo que sustentam a sociedade democrática estável, equilibrada. E isso não é bom para a extrema direita.
Então, eles trabalham para desacreditar esse sistema. Então, isso não é uma derrota do governo, isso não é uma derrota da sociedade. O Soares vai dizer o seguinte: as fontes legítimas que estariam estabelecidas no professor, estariam estabelecidas na universidade, estariam estabelecidas na própria imprensa, elas estão desacreditadas!
Isso é ruim, porque qualquer fake news, qualquer coisa pode passar como verdade, porque a gente não tem como barrar isso, não há vacina para isso. Eu até estou trabalhando no meu pós-doutorado a possibilidade de vacina para isso, mas não cheguei nesse nível. O que eu já descobri é que se fake news é uma propaganda de guerra, a solução é a contra propaganda de guerra.
Foi assim que foi feito contra o nazismo, nós temos que criar uma contra propaganda de guerra. O problema é que a contra propaganda de guerra envolve a sociedade organizada, envolve os grupos…
Altair Tavares – Professor Luiz, me permita um adendo. Eu sou partidário dessa ideia de que fake news não reflete a situação do momento. O que nós estamos tratando mesmo é do velho conceito de propaganda enganosa?
Luiz Carlos – Eu acho que é propaganda de guerra, pior do que propaganda enganosa. Enganosa de guerra. Eu estou montando uma planilha para fazer o estudo, que é interessantíssima.
O Goebbels deixou um diário que foi recuperado pelos americanos em Berlim, quando os americanos e os russos invadiram Berlim. Os russos para o lado, os americanos. Os russos na União Soviética, para o lado.
E esse manual tem 12 itens da propaganda de guerra. Cada um deles exerce uma função na propaganda de guerra. Então, eu estou querendo agora criar os 12 itens da contra propaganda de guerra.
Para cada ação de propaganda de guerra, eu quero criar uma contra ação de propaganda de guerra. O problema é que todas elas envolvem uma questão complexa, envolve a sociedade organizada, envolve as pessoas de bem, que elas precisam se mobilizar. Sem isso, não é possível.
Mas assim, eu acho que a gente tem que caminhar para isso, porque a gente está vivendo uma sociedade de risco há muito tempo. Mas agora o risco está maior, porque o risco não é um risco só eminente, é previsível. É um risco criado artificialmente. E isso é uma coisa muito ruim para a sociedade.
Altair Tavares – Já que o senhor tratou de propaganda de guerra, e aí um dos elementos da propaganda é a preparação e o planejamento. A portaria da Receita Federal é de setembro, a que faz a extensão, fazia né, porque ela foi revogada, a extensão das informações do Pix para as Fintechs – a mudança das informações de R$ 2 mil a partir de R$ 5 mil reais para pessoas jurídicas, para pessoas físicas. E aí, a veiculação do material lá do deputado Nikolas Ferreira, foi feita no final de dezembro. Ou seja, de um período até aquele final, houve uma preparação meticulosa para disseminar a informação, e penso eu, para o alcance que ela conseguiu, inclusive com a propaganda paga.
Luiz Carlos – Sim, totalmente patrocinado. Patrocinado segundo informações veiculadas pelo próprio PL e dirigidas pelo marqueteiro do Bolsonaro. Então, assim, foi realmente preparado, né? Mas a questão é mais profunda até, porque na verdade, essa portaria que determina a criação do custo, fez alterar, mas a de R$ 2 mil, é da época do Fernando Henrique. Então, as pessoas acham que melhorou, vai piorar, porque se era cinco mil, agora é R$ 2 mil, ou seja, é menos ainda. E não tem nada disso.
Na verdade, o que se olha é movimentação financeira irregular. O foco não era o cidadão comum, micro empresário, o foco é as pessoas que lavam dinheiro, que movimentam muito dinheiro usando Pix.
Eu acho que é importante a gente se ater ao que que esse fenômeno está apontando, o que que ele está mostrando em relação à sociedade. Eu acho que é importante a gente perceber essa questão, essa relação entre imprensa e internet. Se a gente for pensar envolve as teorias de comunicação, a questão do agendamento e do enquadramento, né? O agendamento e o enquadramento, ele foi pensado no sentido de como é que a mídia tem força. Na verdade, as fake news estão agendadas e enquadradas.
Elas apresentam um tema que querem pôr em debate e, a partir da perspectiva equivocada, o sujeito é interessado. Então, tudo isso é importante a gente poder perceber.
Mas o mais importante é a gente entender o que esse fenômeno demonstra como um todo, que é essa crise de identidade coletiva. De uma identidade individual cada vez mais prevalecida no consumo, né? E na promessa de uma riqueza empreendedora que não existe, né?
Altair Tavares – Na nossa pré-conversa, o senhor dizia que, após dois anos, o governo federal não conseguiu romper a bolha das fake News.
Luiz Carlos – Você tem que pensar o seguinte, pela teoria, a fake news é feita para enganar as pessoas na esfera pública. O objetivo dela é esse, né?
Então, são informações incompletas, são tendenciosas, são falsas. É associada sempre ao engano, a mentira e a manipulação. De alta velocidade de produção e alcance alto.
E ela é coordenada com vista a uma atitude e um comportamento. É o que a gente chama de raciocínio motivado. Então, você vai perceber que o raciocínio motivado, ou seja, eu mando para pessoas que já têm a intenção de acreditar naquilo. Elas já têm um preconceito.
Eu tava lendo uma frase do Einstein hoje que eu achei maravilhosa, ele falou que é mais fácil você quebrar o átomo do que você quebrar o preconceito.
Luiz Carlos – Então, do ponto de vista de comunicação, você tem contra o governo Lula e o PT, a questão do marcador semântico, que é aquela coisa da emoção maior do que razão, só de falar [que é do PT], você já é contra, você já não gosta. A questão envolve uma certa antipatia do mercado. Uma certa antipatia da mídia tradicional que reproduz. Você vai pegar o fenômeno fake news no Brasil é interessante, porque se olhar as manchetes da grande imprensa, ela reproduz um pouco o que as fake news estão falando.
Então, é o contra-agendamento. Não é a imprensa que agenda, a imprensa está sendo agendada pela internet. No X, no TikTok, nas redes de WhatsApp e por aí afora.
Então, assim, você tem um discurso não plural. Você tem um discurso meio uníssono de que tudo que o governo faz, como é ele quem ele faz, é ruim. Não importa as entregas que ele faça. Tudo que ele faz é ruim, é mal feito.
Uma questão que vem desde o Fernando Henrique e seria, inclusive, regulamentada agora num patamar maior, é considerada um equívoco, e o governo é obrigado a voltar atrás. E aí você pergunta quem é que ganha e quem é que perde com isso? Eu não tenho problema nenhum de usar pix.
Eu, dificilmente, vou ter um pix acima de 5 mil ou de 5 mil. Então, isso não me atingiria, né? Eu sou classe média. Então, você imagina quem é que vai ser beneficiado, quem vai ser prejudicado por isso? É uma questão que a gente tem que aprender: educação para as mídias, educação para a internet.
Vamos analisar profundamente para saber por que o alvoroço foi tão grande? Quantas pessoas falam que 87 milhões de pessoas souberam dessa informação no Brasil?
Se você pensar no universo de 200 e poucos milhões, ou quase um terço, será que esse um terço tem 5 mil para usar pix?
Altair Tavares – Duvido. E aí, Luiz Carlos, já que o senhor trabalha com pesquisa, a sondagem da Quest, mostrando perto de 67% das pessoas acreditando que o governo faria a taxação do pix, ou vai fazer a taxação do pix, é a comprovação de que a manipulação e a mentira deu certo? Ou essa pesquisa foi num período ainda precipitado em que as pessoas não interpretaram ainda o fato?
Luiz Carlos – Olha, assim, essa questão da mentira e da manipulação, foi interessante o Haddad falando que aquela história de que a mentira tem perna curta não é verdade, atualmente, ela tem perna longa. A mentira está com perna longa, mas tem também a predisposição e a indisposição cognitiva já demarcadas.
Está no imaginário popular que governo sempre cobra muito e oferece pouco, qualquer governo. Você vê Goiânia. Aqui, mudou a prefeitura, os buracos continuam na rua, a iluminação continua ruim, o lixo continua, ou seja, é difícil você [o prefeito] arrumar a casa. Demora um tempo e as pessoas não estão com paciência pra isso.
Um governo que foi marcado semanticamente como um governo corrupto, um governo que o presidente foi condenado e na verdade não foi, que é mais uma fake News, então, ele está marcado por tudo isso. E é muito difícil mudar isso.
Eu me lembro que o [publicitário] Duda Mendoza, que já morreu, pegou a campanha do Paulo Maluf em São Paulo e fez mil e uma pesquisas e falou, olha, não adianta Maluf, você é corrupto.
Então, você tem que fazer uma mudança. É difícil você tirar esse preconceito, você tem que passar pra um outro patamar pra combater isso. Mas não é um problema do PT e do Partido, o que eu acho mais grave. É um problema da sociedade. Estamos numa sociedade de baixa credibilidade dos pilares da democracia, isso é que me preocupa mais.
Altair Tavares – E aí entra uma questão, critica-se muito, há muitas críticas sobre a comunicação do governo Lula e aí questiono: na sua visão, quais caminhos deveriam ser seguidos pela comunicação do Lula, ela tem saída?
Luiz Carlos – Na verdade, tem. O caminho, as teorias já mostram: é ouvir as vozes da rua, vamos dizer assim. Eu acho que o governo tinha que ter muito mais pesquisa, ele já teve um Departamento de Opinião Pública muito bom, foi coordenado, inclusive, pelo Pedro Mundim, que é professor da UFG. Ouvir bem isso, analisar bem essas coisas e trabalhar no sentido de entrega.
As pessoas querem governo entregando serviços, o resto é balela. No final das contas, duas coisas contam para o eleitor: a economia, se a inflação está alta ou está baixa, se a minha renda aumentou ou diminuiu; e o que o governo está me oferecendo. O resto é balela. Na hora de votar, as pessoas vão analisar essas duas questões.
À medida que o governo faz entrega, à medida que ele organiza, à medida que ele mostra para onde ele vai, ele está trabalhando nesse sentido, isso tem que ser comunicado, mostrado também, eu acho que os grupos democráticos, não estou dizendo só do PT, as pessoas que são favoráveis à democracia têm que entrar nessa luta e nessa guerra também, porque elas fazem parte disso.
A gente sabe o que é um governo autoritário, o que é um governo não democrático, ou pelo menos de tendências não democráticas. A gente sabe o que é um governo democrático, um governo mais participativo, mais transparente, mais aberto. A gente sabe o que é bome o que é ruim, não precisa ninguém ensinar isso para a gente. A gente precisa se envolver mais.
De que lado eu estou? Não tem em cima do muro. O partido que era considerado partido do muro está acabando, não dá para ficar em cima do muro. Você tem que se posicionar, porque essa é uma questão mundial. É uma questão que não sei se vai ser mais polarizada ainda agora nesse momento, pelas mudanças que estão tendo no mundo, nos Estados Unidos e por aí afora.
Acho que a gente tem que discutir o que a gente quer para o futuro, para os filhos da gente, para os netos da gente, o que a gente quer para o Brasil. Nós completamos 40 anos de redemocratização, então nós temos 50 e poucos anos de democracia em mais de 500 anos de existência. Democracia é uma coisa frágil. É uma coisa ainda não solidificada na sociedade. As pessoas ainda não percebem o valor da democracia, porque elas associam ao valor econômico, e a democracia é muito mais do que a economia. Ela é uma forma de se viver civilizadamente, eu acho que isso que é importante.
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