A 14ª emenda da Constituição americana diz que “todas as pessoas, nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à essa jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos”. Nem todas, porém, estão conseguindo obter ou renovar o passaporte americano com base nesse direito.
Os primeiros casos foram revelados pelo jornal The Washington Post, que identificou pessoas com certidões de nascimento americanas cujo documento que lhes permite sair e entrar do país foi negado pelo Departamento de Estado.
Em comum, todas nasceram do lado americano da fronteira entre EUA e México e tiveram o parto conduzido por parteiras. A decisão é comum entre moradores de cidades fronteiriças diante dos altos custos médicos do procedimento em hospitais.
Ao negar o passaporte, as autoridades contestam a validade da certidão de nascimento, afirmando que são falsas e que seus donos nasceram do lado mexicano da fronteira.
A origem para o questionamento está em casos julgados por cortes federais nos anos 1990 em que parteiras admitiram que fraudaram certidões ao longo da fronteira entre o Texas e o México entre 1950 e 1990. As falsificações eram feitas mediante pagamento.
Especialistas, no entanto, enxergam na recusa do passaporte mais um ataque do republicano à população com raízes hispânicas e que tende a votar nos rivais democratas.
“A origem das recusas é o sul do Texas, majoritariamente latino e com alguns dos condados mais pobres no país. O impacto recai sobre latinos e pessoas que não podem pagar advogados”, diz Tom Jawetz, vice-presidente de políticas imigratórias do Center for American Progress, instituição política apartidária.
“O Partido Republicano está ficando mais velho e mais branco. Por isso, está tentando aprovar leis que restrinjam direitos de negros e latinos.”
Chayenne Polimédio, vice-diretora do centro de estudos New America, também vê fundo eleitoral na medida. “A maioria das pessoas no Texas que vota em democratas é hispânica. Trump nunca falaria que é essa a estratégia, mas é impossível não ver a relação.”
Para Jawetz, há risco de a prática ser direcionada a outras minorias que compõem a população americana.
“É preciso defender o direito de aqueles que nasceram neste país permanecerem nele. Embora não pareça discriminatório, o impacto vai ser majoritário nos latinos, o que condiz com as medidas desse governo e as ideias de muitos republicanos”, afirmou.
A prática de negar passaporte a americanos não é nova: começou sob George W. Bush (2001-09). Mas foi interrompida depois que a Aclu (American Civil Liberties Union) entrou com uma ação contra a medida e forçou um acordo com o governo, aprovado já na gestão do democrata Barack Obama (2009-17).
“A tentativa do governo Trump de negar passaportes para americanos que moram há muito tempo na região de fronteira é só mais um ato desumano de uma série de ações ilegais”, afirmou Lee Gelernt, advogado da Aclu.
Há uma consequência mais grave. Em alguns casos, diz o Post, quem solicita o passaporte com certidões oficiais é detido e submetido ao processo de deportação.
“É uma prática vergonhosa. Eles não são cidadãos de nenhum outro país. Nenhum país vai aceitá-los de volta, eles não têm ligações com outros países que o governo diz que eles têm. Vão ficar presos em detenções para deportação”, diz Kari Hong, professora-assistente da Escola de Direito do Boston College.
Ou seja, criou-se um limbo jurídico, aponta Chayenne Polimédio, do New America.
“Para onde você vai deportar essas pessoas? Muitas vezes não importa o nível de educação do alvo. Eu não sei o que faria se alguém questionasse minha cidadania. Como você prova que é cidadão sem usar a certidão?”, pondera.
A Aclu e outras organizações de defesa dos direitos civis oferecem seus serviços para quem não consegue arcar com os custos do processo judicial para provar a cidadania.
O Departamento de Estado afirma que os passaportes recusados com base em potenciais fraudes em certidões de nascimento estão no menor nível desde 2012.
Em 2017, 28,1% dos passaportes de nascidos com a assistência de parteiras foram negados, contra 35,9% em 2015, sob Obama. De janeiro a 29 de agosto de 2018, o percentual foi de 25,8%.
Não é a primeira vez, tampouco, que o presidente Donald Trump questiona a cidadania de nascidos nos EUA.
Em 2010, quando o republicano ensaiava sua estreia política, ele concedeu uma entrevista ao programa Good Morning America, da emissora ABC, em que dizia estar “um pouco cético” sobre a cidadania de Obama, nascido no Havaí e filho de pai queniano.
A partir daí Trump pediria várias vezes ao então presidente que exibisse a certidão de nascimento, o que ele fez. Só em 2016 o republicano admitiu que Obama, de fato, havia nascido nos EUA.