Em entrevista ao jornal O Globo publicada nesta quinta-feira (17), Gilmar Mendes, o ministro mais antigo (decano) do Supremo Tribunal Federal (STF), fez críticas diretas e contundentes ao movimento que propõe o PL da Anistia para beneficiar os condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Interlocutor ativo entre o Judiciário e o Congresso Nacional nas discussões sobre o futuro jurídico dos envolvidos nos atos, o ministro aponta motivações políticas e alerta para os riscos institucionais do Projeto de Lei.
Na entrevista, conduzida pelos jornalistas Mariana Muniz e Thiago Bronzatto, o decano abordou outros temas atuais e polêmicos. Entre eles, as emendas secretas no Congresso e a decisão do ministro de suspender os processos que discutem a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, os PJs.
Anistia com endereço certo
Gilmar Mendes afirma que o movimento político em favor da anistia não é movido por benevolência aos réus mais vulneráveis, mas sim pela intenção de proteger os mentores do plano golpista — entre eles, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que já é réu por tentativa de golpe de Estado.
“A minha experiência política, nesses anos todos, revela que esse projeto só tem impulso com o objetivo de beneficiar os mentores”
Ele ainda lembrou que a iniciativa surgiu “a partir da conclusão das investigações e do oferecimento das denúncias”.
Segundo o magistrado, ainda que se usem como justificativa os casos de menor gravidade, como o da mulher que pichou uma estátua com batom, a proposta esconde um objetivo mais amplo: “O melhor invólucro pode até ser a Débora do Batom, mas o projeto tem outra mira.”
Gilmar relembra que os atos de 8 de janeiro incluíram planos de violência real, como o assassinato de autoridades. “Não podemos minimizar se pensamos em matar o presidente da República, o ministro do Supremo, o vice-presidente da República… Onde estaríamos hoje?”, questiona.
Revisão de penas? Só individualmente
Apesar das pressões políticas, o ministro descarta a possibilidade de revisão ampla das sentenças já proferidas pelo Supremo no caso dos golpistas de 8 de janeiro. Ele afirma que qualquer flexibilização se dará apenas com base em critérios legais previstos, como a progressão de regime ou prisão domiciliar, avaliadas caso a caso.
“O que poderá haver é a análise de situações individualizadas que justifiquem a progressão, que já está prevista na legislação, ou a aplicação de prisão domiciliar.”
Ele lembra ainda que mais de 500 pessoas já foram beneficiadas com acordos de não persecução penal, o que demonstra que o STF tem adotado medidas proporcionais. Em um exemplo pessoal, citou o apelo feito por um bispo da cidade natal do ministro, envolvendo um réu que se dizia religioso, mas que foi flagrado quebrando bens públicos.
“Não estamos falando de um passeio no parque”, frisou, ao rebater a tese de que os manifestantes foram apenas “instrumentalizados”.
Fux e a “forte emoção”: Gilmar rebate
Ao ser perguntado sobre a declaração do ministro Luiz Fux, de que os primeiros julgamentos do 8 de janeiro teriam sido realizados sob forte emoção, Gilmar Mendes discordou de forma categórica:
“Não acho que nós sejamos pessoas submetidas a fortes emoções. Normalmente, não é o nosso caso.”
Para ele, o momento pedia uma resposta firme. Na entrevista, Gilmar Mendes ainda rememorou a tensão vivida em 7 de setembro de 2021, quando manifestantes quase invadiram o Supremo, e apontou que o episódio do 8 de janeiro foi ainda mais grave.
“Era todo um conluio que justificava os temores que depois foram infelizmente confirmados.”
Segundo o ministro, o STF agiu com rigor justamente por compreender que se tratava de um “ensaio” perigoso e inédito na história recente da democracia brasileira.
Diálogo institucional e “muita espuma”
Apesar da gravidade dos fatos, Gilmar Mendes elogiou a atual interlocução entre os Poderes, classificando o ambiente político como “tranquilo”. Ele destacou conversas frequentes com o presidente da Câmara, Hugo Motta, e com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
“Temos um ambiente institucional muito tranquilo. Tem muita espuma, mas nós estamos num momento de bom diálogo dos Poderes.”
Sobre as negociações envolvendo o governo e o Congresso em torno da anistia, Gilmar tratou com cautela a fala da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que afirmou haver conversas do Planalto nesse sentido.
“Ela já fez uma retificação. São temas sensíveis, e essa questão também é muito sensível na nossa perspectiva.”
Democracia sob ataque
O ministro defendeu a legitimidade das eleições de 2022 e criticou duramente a tentativa de reversão dos resultados por parte dos bolsonaristas. Para ele, o questionamento seletivo dos resultados, focando apenas para a eleição presidencial, revelou o caráter antidemocrático do projeto.
“A ação do PL foi criticada de A a Z. Pedia a anulação apenas dos votos para presidente, mas mantidas as bancadas de Câmara, Senado e governadores. Um quadro caricato, para dizer o mínimo.”
Gilmar Mendes ressaltou que a essência da democracia é a aceitação da alternância de poder. Para ele, a recusa de Bolsonaro em aceitar sua derrota nas urnas representa uma ruptura com esse princípio básico.
“Na medida em que alguém perde a eleição e não aceita a alternância de poder, encerrou-se o ciclo democrático tal como nós o conhecemos.”
Futuro de Bolsonaro em pauta
Na entrevista, Gilmar Mendes reconheceu que é possível que o julgamento de Bolsonaro no STF, relacionado ao 8 de janeiro, ocorra ainda este ano. Mas ele preferiu adotar um tom prudente: “Vamos aguardar”.
Ele comentou ainda a afirmação do ministro Alexandre de Moraes de que é remota a chance de Bolsonaro reverter a inelegibilidade no STF. Mendes concorda com a análise geral: “Se olharmos os casos de discussão e decisões do TSE, são raros os casos de reversão.”
Relação com o Congresso e o avanço conservador
Questionado durante a entrevista ao Globo sobre o impacto de um eventual aumento de parlamentares conservadores no Congresso após 2027, Gilmar Mendes demonstrou confiança na manutenção do diálogo institucional.
“Sempre lidamos com pessoas de diferentes perfis em um ambiente de diálogo. Espero que no futuro também seja assim.”
Segundo o ministro, a chave para a convivência entre os Poderes está na defesa dos valores constitucionais e da democracia.
Emendas parlamentares e o fim do sigilo
Gilmar também comentou a existência de inquéritos no STF sobre desvios de verbas via emendas parlamentares, mas alertou que não se trata de algo “generalizado”.
“A ideia é de acabar com o modelo secreto das emendas pix.”
Ele defendeu a revisão do atual modelo de emendas impositivas para criar um sistema mais equilibrado e transparente.
Trabalho por PJ e decisão de suspensão
Por fim, Gilmar explicou a decisão de suspender os processos que discutem a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas. O motivo é a insegurança jurídica provocada por decisões conflitantes:
“Todos nós clamamos por segurança jurídica. Não devemos ser nós do Judiciário que produzamos insegurança.”
Segundo o ministro, é hora de promover um debate mais claro dentro da própria Corte e com a Justiça do Trabalho, buscando alinhamento e coerência nas decisões sobre o tema.
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