A tragédia ocorrida no município de Padre Bernardo, em Goiás, onde o colapso de um lixão privado causou destruição ambiental e riscos à saúde pública, não pode ser tratada apenas como um acidente isolado ou um problema de gestão. O episódio revela um enredo mais profundo e alarmante: o papel omisso – e, em certa medida, conivente – da Justiça na manutenção do funcionamento irregular de empreendimentos como este.
Desde 2016, o lixão operava amparado por decisões judiciais que autorizaram sua atividade, mesmo diante de alertas de irregularidades ambientais e da ausência de licenciamento adequado junto à Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (SEMAD).
Esse é o ponto mais revelador do desastre: as instituições que deveriam proteger o meio ambiente acabaram contribuindo para sua degradação. A cada liminar concedida, a cada renovação de funcionamento embasada em argumentos frágeis ou apenas econômicos, foi se ampliando a permissividade com práticas que desrespeitam a política nacional de resíduos sólidos e colocam comunidades em risco. O caso de Padre Bernardo é, portanto, um retrato do fracasso das estruturas regulatórias quando submetidas à lógica do improviso judicial e da leniência institucional.
Desde a criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), o Brasil estabeleceu parâmetros técnicos claros para a destinação adequada de resíduos. A lei exige que lixões fossem extintos e substituídos por aterros sanitários licenciados, que operam com controle de chorume, impermeabilização do solo, coleta de gases e monitoramento ambiental. No entanto, o que se viu com a proliferação dos chamados “lixões privados” foi uma distorção dessas exigências em favor de interesses econômicos. Muitos desses empreendimentos se autodenominam aterros, mas operam como depósitos de resíduos a céu aberto, sem qualquer rigor técnico.
O lixão de Padre Bernardo, operado por uma empresa privada, seguiu esse modelo. Não havia monitoramento eficiente de resíduos perigosos, contenção de líquidos contaminantes nem isolamento da área. Os danos não foram apenas ambientais, mas também sociais: moradores das proximidades relataram doenças, mau cheiro, contaminação da água e perda da biodiversidade local. E tudo isso aconteceu diante dos olhos da Justiça, que falhou em perceber – ou preferiu ignorar – que decisões liminares não podem se sobrepor ao dever de proteger o meio ambiente e a coletividade.
A secretária de Meio Ambiente de Goiás, Andréia Vulcanis, vem alertando publicamente para o problema desde 2020. Segundo ela, o caso de Padre Bernardo é simbólico de uma realidade preocupante em que empresas exploram resíduos como negócio, sem seguir parâmetros técnicos ou legais. Em diversas ocasiões, Vulcanis denunciou que o lixão operava de forma irregular e tentou, por meio da SEMAD, impedir sua continuidade, mas esbarrou em decisões judiciais que mantiveram o funcionamento.
“A SEMAD alertou a Justiça e o Ministério Público inúmeras vezes. O empreendimento era ilegal, não atendia a critérios mínimos e já havia sido autuado”, afirmou. Ela também declarou que o episódio “era uma tragédia anunciada”.
Essa tragédia também lança luz sobre a realidade de centenas de lixões espalhados pelo país, gerenciados sob o mesmo padrão de improviso, negligência e busca por lucro rápido. Aterros sanitários tecnicamente operados têm custos de manutenção altos e exigem cumprimento rigoroso de normas ambientais, como as estabelecidas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), em especial as Resoluções nº 404/2008 e nº 307/2002. Mas, sem fiscalização firme, muitos empreendimentos simplesmente contornam essas obrigações, contando com a morosidade da administração pública ou com a benevolência do Judiciário.
A SEMAD de Goiás, nesse contexto, deve assumir papel de protagonista. A tragédia de Padre Bernardo sustenta com clareza a necessidade de vigilância constante e rigor absoluto na fiscalização ambiental. A secretaria não pode hesitar diante de pressões econômicas ou decisões judiciais frágeis.
Sua missão legal – definida pelo próprio arcabouço da Lei Complementar nº 140/2011 – é garantir que o funcionamento de qualquer empreendimento que lide com resíduos siga os parâmetros de licenciamento, controle, monitoramento e recuperação dos danos ambientais.
O que se espera agora não é apenas a punição exemplar aos responsáveis diretos pela tragédia, mas também a revisão do papel que o sistema de Justiça desempenhou no caso. É preciso compreender que a omissão judicial – ainda que travestida de boas intenções ou de “garantia ao livre exercício da atividade econômica” – pode ter consequências trágicas. Não há segurança jurídica sem responsabilidade ambiental. O precedente aberto por Padre Bernardo deve servir como alerta não apenas para o governo de Goiás, mas para todo o país.
Se a lição for aprendida, talvez a dor deixada pela destruição do meio ambiente e pela degradação da vida das famílias afetadas possa ao menos servir como catalisadora de mudanças. Caso contrário, a Justiça seguirá sendo cúmplice de crimes cometidos à sombra da legalidade.
Altair Tavares
Editor e administrador do Diário de Goiás. Repórter e comentarista de política e vários outros assuntos. Pós-graduado em Administração Estratégica de Marketing e em Cinema. Professor da área de comunicação. Para contato: [email protected] .