09 de dezembro de 2024
FRAUDE NA COTA

Candidata de Anápolis confirma em cartório que foi usada como laranja na eleição desse ano

Como mostrou o DG em outubro, a prática de candidaturas femininas sem campanha, só para atender cota de gênero, como reconhecida em Anápolis, pode ser considerada fraude eleitoral
Soraya procurou cartório e registrou declaração após rumores de que era "candidata fantasma" - Foto: TSE
Soraya procurou cartório e registrou declaração após rumores de que era "candidata fantasma" - Foto: TSE

A ex-candidata a vereadora de Anápolis, Soraia Mafra, que é pedagoga, registrou uma escritura pública declaratória onde informa que apenas “emprestou o nome” para que a chapa do Podemos no município atingisse a cota de candidaturas femininas. A declaração confirma o alerta feito pelo Diário de Goiás no dia 7 de outubro, sobre o uso de candidaturas femininas fictícias nas eleições municipais desse ano, a despeito do endurecimento da fiscalização pela Justiça Eleitoral.

Um dia depois do primeiro turno da eleição, que elegeu os vereadores nas cidades, o DG citou o provável uso de “candidatas laranjas”. A reportagem sinalizava candidaturas que tiveram 10 votos ou até menos, e que isso reacende o debate sobre o uso da cota de gênero e os riscos legais associados a essa prática.

Candidata teve só dez votos e declarou que não fez campanha

E casos como o da pedagoga, que teve apenas dez votos, ilustram objetivamente o problema. Na declaração lavrada no 1º Tabelionato de Notas de Anápolis no dia 29 de outubro (veja cópia ao final), a ex-candidata a vereadora admitiu que se filiou no Podemos em 2024 com a intenção de substituir o nome do marido, Rubler Monteiro Rocha. Segundo a declaração dela, o esposo teve negada a pretensão dele se candidatar pela legenda. A reportagem buscou ouvir o casal, mas o contato deles não foi localizado.

De acordo com a declaração de Soraya, a candidatura foi orientada pelo Diretório Municipal do Podemos com o único propósito de cumprir a exigência de 30% de candidaturas femininas prevista pela Legislação Eleitoral (Lei nº 9.504/1997). Ela então “emprestou” o nome para compor a chapa do partido, sem qualquer intenção de realizar campanha.

Ainda consta na declaração voluntária da ex-candidata, sem citar nomes, que o partido a orientou a não se preocupar com a campanha ou com a busca de votos, bastando sua presença na chapa para atender a legislação. Na declaração, ela também expôs que informaram que, para o registro da candidatura, seria necessário ter um valor em espécie que ela não possuía. Dessa forma, não é verdadeiro o patrimônio de R$ 5.000 registrado em seu nome no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A pedagoga disse estar disposta a reafirmar esses pontos em juízo.

“Oferta de dinheiro e cargo”

Para agravar, segundo ela, o partido teria oferecido valores para cobrir despesas de transporte e outras taxas. Além disso, teria oferecido cargos para o marido de Soraya na Agência Reguladora de Anápolis.

Ainda ficou registrado no depoimento da mulher que o Podemos não exigiu prestação de contas, pois conforme teria sido dito, “a candidatura não visava resultados reais na eleição” e que ela decidiu tornar as coisas claras fazendo o registro de sua versão em cartório diante de “rumores de que ela era candidata fantasma”. Além de sustentar a veracidade de suas declarações, a ex-candidata afirmou em cartório que está ciente das implicações legais.

A revelação lança luz sobre o impacto de candidaturas femininas fantasmas e expõe um cenário preocupante para o Podemos em Anápolis, pois, se confirmada a fraude, a prática pode culminar na cassação do próximo mandato do único vereador do partido, Reamilton do Autismo, que foi reeleito.

Presidente do Podemos diz que desconhece denúncia

O DG fez contato com a presidente do Podemos no município, Raquel Magalhães Antonelli, que também disputou, mas não conseguiu se eleger.  Raquel era chefe de gabinete do prefeito Roberto Naves (PP) e foi também secretária de Governo e Recursos Humanos da atual gestão.

Presidente do diretório do Podemos, Raquel Antonelli diz que desconhecia denúncia e nega – Foto reprodução redes sociais

Ela enviou uma resposta por escrito em que afirma: “O partido cumpriu todo cronograma eleitoral de acordo com a lei. Não temos conhecimento de nenhuma denúncia. A referida candidata recebeu assim como os outros demais candidatos todas as orientações desde a pré-campanha, bem como participou de todo o pleito ativamente.” Perguntada se foi negociado algum cargo em troca de Soraya compor a cota feminina na chapa, ela disse que não.

Como mostrou a reportagem do DG em outubro, assim como outros casos de Anápolis, de outros partidos, o de Soraya não é isolado. Em Goiânia e Aparecida de Goiânia, candidatas registraram votações inexpressivas que chamaram a atenção. Um exemplo citado foi Goreth Amaral, pelo Partido Novo, com apenas 18 votos, e outras mulheres com 7, 6 ou até 4 votos. O contato de Goreth não foi fornecido pelo partido.

Esses números alarmantes levantam suspeitas de que várias candidatas possam ter sido lançadas apenas para cumprir a cota de gênero, sem realização de campanha real ou material de divulgação, como prevê a legislação eleitoral.

Cota está na lei

A cota de gênero, estabelecida pela Lei nº 9.504/1997, visa aumentar a representatividade feminina nos cargos públicos, exigindo que ao menos 30% das candidaturas sejam de mulheres. Contudo, o cumprimento superficial da regra é visto por especialistas como um entrave à efetividade da lei.

Ouvida pelo DG anteriormente, a advogada Júlia Matos, especialista em Direito Eleitoral, apontou que votações inexpressivas e ausência de atos de campanha são indícios típicos de fraudes desse tipo. Antes dos primeiros casos se materializarem, ela já previa que Goiás deve enfrentar uma série de ações judiciais sobre o tema ainda este ano e no início de 2025, baseadas na Súmula 73 do TSE, que prevê punições para chapas que usam candidatas apenas para cumprir a cota.

A advogada enfatiza que a nova súmula do TSE é um marco, pois permite a cassação dos diplomas de candidatos beneficiados por fraudes à cota de gênero. Isso significa que, em situações onde se prove que as candidatas não participaram ativamente do pleito e apenas preencheram formalmente a cota, todos os eleitos da chapa podem perder seus mandatos. Para Júlia, o uso das candidaturas fictícias não apenas atenta contra a lei, mas desvaloriza a importância da participação feminina na política e afasta ainda mais as mulheres dos espaços de decisão.

A situação ganha ainda mais complexidade quando se avalia o impacto da fraude para a sociedade. A inclusão de mulheres na política visa a representatividade de uma população onde elas somam 52% do eleitorado. No entanto, o descumprimento das cotas de forma substantiva apenas amplia a lacuna já existente, como evidenciado pelo fato de que, em Goiânia, apenas 5 mulheres conseguiram se eleger em um universo de 37 vagas disponíveis.

Fraude fragiliza sistema eleitoral

A prática de fraudes com candidatas “laranjas” impõe riscos reais ao sistema eleitoral e aos partidos. A justiça eleitoral e a sociedade têm observado o tema com atenção, em um esforço para coibir o uso de candidaturas femininas meramente formais. E os casos questionados, mesmo que tardiamente, levaram à perda de mandatos de parlamentares que já estavam no exercício pleno.

O debate sobre a participação efetiva de mulheres na política segue em pauta, destacando a necessidade de mecanismos que garantam candidaturas femininas autênticas. Mais do que uma formalidade, a cota de gênero é essencial para a construção de uma política inclusiva e representativa.


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