JOANA CUNHA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se o Brasil tivesse um bom sistema tributário, não estaria discutindo tributação como forma de resolver um problema setorial como foi a paralisação dos caminhoneiros. É a avaliação do economista Bernard Appy, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal).
O governo cedeu às reivindicações dos motoristas, baixou R$ 0,46 no preço do litro do diesel (abatendo Cide e PIS/Cofins), mas a medida abre brecha para que outros setores comecem a fazer greve pedindo redução de tributos específicos, segundo Appy.
“Duvido que uma crise dessa em outros países seria solucionada assim. As discussões de carga tributária deveriam ser feitas para todo o país, e não para o setor X ou Y”, afirma.
Para compensar o corte no preço do combustível, o governo vai elevar a arrecadação de impostos de exportadores, indústria química e de refrigerantes, além de reduzir recursos para programas nas áreas de saúde e educação.
Para Appy, as medidas têm um lado positivo porque, ao adotar reduções de despesas e de subsídios, o governo sinaliza que não vai permitir uma piora das contas públicas. Por outro lado, não é bom para a imagem do país cortar benefícios sem aviso prévio.
“Acho que deveria eliminar esse monte de benefício fiscal que temos no país. Mas deveria eliminar com transição e previsibilidade”, defende.
Pergunta – Qual é a relação entre o protesto dos caminhoneiros e o nosso sistema tributário?
Appy – Medidas tributárias não deveriam ser usadas para resolver questão conjuntural como essa. Se tivéssemos um bom sistema tributário, não estaríamos discutindo tributação como forma de resolver esse problema. O fato de termos um sistema tributário que só tem exceção, não tem regra, ajuda muito a ficar tentando procurar soluções tributárias para uma crise dessas.
Sem reforma tributária estamos sujeitos a ter novas paralisações como essa?
Appy – Não temos tantos setores que têm essa capacidade de tornar o país refém como os caminhoneiros. Mas abre a possibilidade de que se comece a fazer greve para reduzir tributos de um produto específico. Isso existe porque o Brasil tem essa profusão de alíquotas, tratamentos diferentes por produtos, multiplicidade de tributos. Duvido que uma crise dessas seria solucionada dessa forma em outros países. Temos um problema de fundo no Brasil, que é o fato de que nós discutimos tributo por setor. Tributo deveria ter uma regra igual para todo mundo. Isso [tributação distinta de acordo com o setor] não só gera distorções ruins para a economia como abre espaço para gerar esse tipo de movimento de um setor querendo reduzir a própria tributação. As discussões de carga tributária deveriam ser feitas para todo o país, e não para o setor X ou Y.
Como o sr. avalia as medidas anunciadas pelo governo na quinta (31) para compensar redução do diesel?
Appy – Uma parte é redução de Cide e PIS/Cofins naquilo que vai ser compensado pela reoneração da folha e o resto é subvenção para que a Petrobras opere com preço mais baixo. O governo até poderia ter feito uma parte sem compensação com crédito extraordinário, que é quando se abre um crédito através de uma medida provisória em situação excepcional, calamidade, crise. É um pouco o caso, mas o governo adotou medidas para compensar essa perda de arrecadação. Houve cortes de despesas, algumas medidas de arrecadação e a redução de benefícios.
São medidas adequadas?
Appy – Eu vejo um lado positivo. O governo poderia dizer que isso não precisaria ser compensado do ponto de vista do teto dos gastos, mas quis sinalizar que não vai permitir uma piora das contas públicas e adotou as medidas de redução de despesas e de redução de desonerações. É uma sinalização de compromisso com as metas fiscais e sustentabilidade fiscal.
Mas tirar benefícios de outros setores sem aviso prévio também é ruim?
Appy – É ruim porque o governo está acabando com benefícios do dia para a noite sem previsibilidade. Há empresas que fizeram investimentos em cima disso. Não sou a favor desses benefícios, mas as empresas fizeram seus planejamentos.
Qual deveria ser a atitude daqui para a frente com os subsídios? Nossa estrutura de isenção é muito grande. Como deve ser corrigida?
Appy – Acho que deveria eliminar esse monte de benefício fiscal que temos. Mas com transição. Seria bom as empresas entenderem que no Brasil as regras não mudam do dia para a noite, a depender das circunstâncias. Não estou dizendo que o benefício que o governo está eliminando é bom. Mas a forma de fazer deveria ser outra.
Uma das justificativas para tirar subsídio do exportador é que ele já está sendo beneficiado com a alta do dólar. Faz sentido justificar assim?
Appy – Não faz. Obviamente, quando o dólar sobe, favorece o exportador. Agora, o Reintegra [programa que devolve o imposto pago por exportadores] foi criado com o argumento de que era para compensar o impacto negativo sobre a competitividade dos exportadores brasileiros e os defeitos do sistema tributário brasileiro, que tem muita cumulatividade. Há impostos que você paga ao longo da cadeia produtiva e você não consegue recuperar, o que acaba onerando o exportador. Na maior parte dos outros países que têm o modelo IVA (Imposto sobre Valor Adicionado), paga-se imposto ao longo da cadeia, mas quando se exporta, é possível recuperar. No Brasil, ao exportar, você não consegue recuperar uma parte dos tributos. O Reintegra foi criado um pouco com o argumento de que compensaria essas deficiências. Isso não tem a ver com câmbio. A rigor, o Reintegra deveria terminar quando melhorasse o sistema tributário brasileiro.
O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, disse que ia compensar a queda do preço do diesel sem elevar imposto. Há risco de voltarem com mais carga tributária?
Appy – Acho que não. O governo tinha margem no resultado primário até algumas semanas atrás. A greve dos caminhoneiros provoca um efeito direto, que o governo está compensando com redução de benefícios e cortes de despesas. E outro efeito é o indireto, pela desaceleração do crescimento: vamos ter um PIB menor do que se esperava no ano. Ele compensou, aparentemente, de forma integral os efeitos diretos, que eram mais relevantes. Não se pode prever o futuro com segurança absoluta neste país, mas não vejo muito risco de aumento de carga tributária nos próximos meses.
Agora que conhecemos a cara do pacote, qual vai ser o impacto para a população?
Appy – Eu acho que não é só a cara do pacote. Temos que olhar o impacto de tudo o que aconteceu. Quando aumentou o custo do insumo principal dos caminhoneiros, que é o diesel, numa economia competitiva, isso seria repassado para preço. Ou seja, o frete ficaria mais caro e provavelmente a população pagaria um pouco mais pelos bens de consumo. Mas foi feita a greve, e esse aumento de custo, que deveria ter sido resolvido na negociação entre os caminhoneiros e os seus clientes, foi jogado para a população. Então, o custo social vai ser mais alto do que teria sido o aumento do preço se tivessem só repassado a alta do diesel para o frete.
Nos bloqueios de estradas, os caminhoneiros argumentavam que, se o diesel baixasse, isso beneficiaria a todos porque faria cair o preço do tomate.
Appy – Não tem almoço grátis. Se você pega uma conta que é privada e joga para o governo, o contribuinte vai pagar. Uma parte grande do que será concedido aos caminhoneiros levou a uma piora do resultado fiscal porque o governo está compensando via cortes de gastos e redução de benefícios fiscais. Se tinha condição de cortar gastos, então tinha condição de reduzir a carga tributária antes. Além disso, há um efeito negativo para a economia. Vai levar a juros mais altos, o que é ruim para o contribuinte. Outra coisa: a decisão de instituir tabelamento do frete e reservar 30% dos serviços de frete da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] para os autônomos é uma medida que reduz a competição no mercado de frete. E isso, no longo prazo, significa frete mais caro. Quem paga é o contribuinte. E finalmente tem o custo da desorganização da economia no período da greve.
A redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) sobre concentrados de refrigerantes é interessante?
Appy – Essa é divertida porque você aumenta a arrecadação reduzindo a alíquota do imposto, coisa que só existe no Brasil. O concentrado é feito na Zona Franca de Manaus e não paga IPI lá. Aí ele vende para a engarrafadora, que mistura com água gaseificada. Ele não paga na Zona Franca e gera crédito quando é usado pela engarrafadora. O que a gente chama de imposto no Brasil, neste caso, é um subsídio, porque você não paga o imposto e dá um crédito. Então, na hora que você reduz a alíquota, você está reduzindo esse subsídio. É maluquice brasileira. Não conheço nada assim no resto do mundo.